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SUSTENTABILIDADE

[ARTIGO] Onde o vento faz a curva

• 28/08/2015 às 9:30 • Atualizada em 01/09/2022 às 7:58 - há XX semanas

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Por Sérgio Leitão*

Se existisse um Tratado das Desigualdades Humanas, um país tão injusto como o Brasil daria exemplos para ilustrar vários tipos descritos em suas páginas. A desigualdade educacional em nosso país, para citar um de nossos problemas mais evidentes, é aquela que, na corrida por um lugar ao sol, faz com que alguns poucos corredores sempre larguem na frente, premiados por fazerem parte de famílias em que o acesso ao ensino de boa qualidade se dá de uma forma quase que natural (em que pese o quanto a classe média precisa ralar para pagar as mensalidades das boas escolas).

A desigualdade de renda pode ser atenuada de certo modo, se se consegue passar pelo funil estreito que garante o acesso às boas escolas e o ingresso nas melhores universidades do país – aos que ganham pouco e não tiveram uma boa formação, resta pagar para estudar em uma universidade particular. É o óbvio: quem tem uma boa formação tem acesso aos melhores empregos e ganha mais. Isso sem falar nos aspectos de raça e gênero que certamente agravam muitíssimo a questão da desigualdade no país.

Neste texto, irei me deter na desigualdade do lugar onde se mora, que nem sequer é percebida como um dos exemplos clássicos para refletir as diferenças em nosso país. A desigualdade do lugar onde se mora pode ser representada pelo lado dos favorecidos, por quem vive onde a vida corre mais fácil, dispondo de serviços de água, esgoto, coleta de lixo, policiamento, praças ajardinadas, boas condições de mobilidade em transporte público, ruas asfaltadas, teatros, cinemas. Perto do que é bom e longe daquilo que se chama de ruim, o cenário perfeito de um bairro rico em uma novela da Globo.

Morar longe significa não só não estar próximo, no sentido físico da distância, mas o viver “sem”

Sobre o lado dos tratados desigualmente, pode-se imaginar exatamente o contrário de tudo isso, só que elevado à máxima potência. No Brasil, morar longe é, antes de tudo, sinônimo de viver mal. É estar próximo do inferno e longe do paraíso, representado pela praia, pelo parque, o teatro, o museu. É não ter acesso fácil a tudo o que é preciso para tocar a vida no dia a dia, a escola, o emprego, o hospital. É dispor de forma precária dos serviços que fazem a vida fluir de forma mais suave, como o ônibus passando na porta de casa, o caminhão para a coleta regular do lixo, a água jorrando pela torneira todo dia.

É verdade que morar longe pode causar dissabores em qualquer lugar, seja Paris, Nova Iorque ou Aracaju, até porque existe uma centralidade na localização de determinados equipamentos culturais, como teatros ou salas de concertos, que sempre impõe a quem não está perto o ônus de se deslocar por mais tempo. Mas uma coisa é ir morar longe por opção, em busca de um Paraíso Perdido, como é o caso dos moradores dos condomínios da grande São Paulo. Outra coisa é morar longe porque foi empurrado para fora das áreas centrais, segregado em regiões distantes que ainda são batizadas com o nome de políticos, como a Cidade Ademar, em São Paulo (em homenagem ao ex-governador Adhemar de Barros).

Morar longe significa não só não estar próximo, no sentido físico da distância, mas o viver “sem”, enquanto ausência ou falta daquilo que é necessário e que quase sempre está presente na vida de quem vive “perto”.

Viver longe é tão difícil que induziu a criação de uma série de anteparos verbais, caricatos, quase de autodefesa, próprio de quem quer rir da própria desgraça, que servem para disfarçar essa condição quando se precisa responder a uma simples pergunta: onde você mora? Moro onde o vento faz a curva. Ou a resposta clássica: eu não moro, eu me escondo.

Só que, ao contrário das desigualdades de renda e de educação, onde o país, ainda que aos trancos e barrancos, vem fazendo progressos nos últimos anos, a questão da desigualdade do lugar onde se mora continua muito ruim, esquecida à margem do imenso caminho que foi percorrido em termos de progresso social a partir dos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula.

E, se não bastasse o fato de que esses governos passaram longe de atacar um dos problemas centrais na desigualdade do lugar onde se mora (o da oferta em quantidade e qualidade de um bom transporte público), a melhoria da economia nos últimos anos fez agigantar-se a crise da moradia em nossas grandes cidades.

A verdade é que os preços dos imóveis urbanos aumentaram dramaticamente, tornando muito difícil a realização de antigos desejos de, por exemplo, usar o centro da cidade de São Paulo para garantir a oferta de moradia para setores de menor renda. Dados coletados pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) em 11 cidades, indicam que o bairro da Sé teve a maior valorização imobiliária no Brasil nos últimos anos, com o metro quadrado aumentando 113% entre 2010 e 2013. O segundo lugar em São Paulo coube à região da Luz/Bom Retiro, com alta de 98% no período.

Do mesmo jeito que o preço da terra subiu nas áreas centrais, isso também ocorreu nas regiões mais distantes, inviabilizando o acesso a um terreno para quem desejava construir uma casa para abrigar a filha que casou e vai ter um filho. Isso pode ajudar a explicar a emergência dos atuais conflitos pela posse da terra em várias cidades brasileiras, capitaneadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

Prova disso é o grande número de ações sobre conflitos fundiários em São Paulo, somando 35 mil (1.500 apenas de janeiro a maio de 2015), o que levou o Tribunal de Justiça do Estado a discutir a criação de um setor especializado em julgar questões envolvendo a posse da terra na cidade e no campo. São mais de 160 mil ações em todo o Estado.

Está claro que as grandes cidades brasileiras, em especial São Paulo, estão vivendo uma nova onda de turbulência na disputa pela ocupação do território urbano

Não conseguimos criar instrumentos para viabilizar a reocupação das partes degradadas do centro da cidade enquanto o preço da terra estava barato e agora assistimos a um flashback, tal como nos anos 70/80, de uma onda de ocupações de áreas em regiões que poderiam muito bem ser destinadas para outros fins, como o da preservação dos mananciais, no momento em que São Paulo enfrenta a maior crise de abastecimento de água da sua história – crise que veio para ficar e se tornar parte da rotina do caos nosso de todo dia.

Acontece que aos pobres a conta é cobrada duas vezes. Quando a economia melhora, os preços dos terrenos sobem, praticamente inviabilizando a construção de uma casa. Quando a economia piora, o que já era ruim fica péssimo, pois sem emprego nem o dinheiro para o aluguel sobra. Aí repete-se a velha história de sempre: a da ocupação dos lugares menos indicados para moradia, com a beira dos mananciais, contribuindo para diminuir a oferta de água especialmente nos bairros mais afastados da cidade.

Isso tudo num cenário onde é flagrante a incapacidade real dos poderes públicos para intervir na arbitragem da renda da terra, da economia da terra urbana, condição indispensável para resolver a crise da moradia. Essa incapacidade do Estado é, segundo o sociólogo Zygmunt Bauman, o que caracteriza a vida nas grandes metrópoles globalizadas: “As cidades são hoje verdadeiros campos de batalha, onde poderes globais se chocam com identidades locais abandonadas pela desintegração da solidariedade social”.

O espaço da cidade sofre injunções de políticas que escapam por completo ao mando do prefeito, o que ajuda a explicar a crise permanente de representatividade que se abate sobre essa forma de territorialidade, porque, como explica Bauman, existe um divórcio entre o poder que é global, a capacidade de decidir o que vai acontecer que também é global, e a política, que permanece local, tornando suas “iniciativas e empreendimentos cada vez menos relevantes para os problemas existenciais dos cidadãos”.

Não à toa, em artigo publicado na Folha de S.Paulo de 29 de julho, escrito com Wilson Levy, o desembargador José Renato Nalini, presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, afirma que os limites técnicos e orçamentários dos municípios impedem que eles tenham um papel decisivo para garantir a ampliação do acesso à terra urbanizada, “favorecendo a multiplicação dos conflitos”.

Está claro que as grandes cidades brasileiras, em especial São Paulo, estão vivendo uma nova onda de turbulência na disputa pela ocupação do território urbano, que só se intensificará à medida que a crise econômica que se abateu sobre o país desde o início de 2015 se tornar mais aguda, crescendo o desemprego e a recessão. A pergunta que pode se fazer agora é sobre o modo como os trabalhadores, os movimentos sociais, a sociedade como um todo, participarão desse debate, ainda mais quando se olha as mudanças que o país experimentou ao longo dos últimos 30 anos, quando ingressamos num novo ciclo de democracia política com o fim da ditadura militar.

Para o antropólogo James Holston, desde os “anos 1970 as classes trabalhadoras do Brasil vêm articulando uma formulação diferente de cidadania, depois que se mudaram para as cidades e formaram periferias urbanas. Essa urbanização as transformou”. Segundo Holston, os trabalhadores pobres precisaram “construir suas próprias casas, se organizar para conseguir serviços básicos e lutar para manter suas casas em meio a diversos conflitos, frequentemente violentos, pela propriedade dos imóveis. Ainda assim, em algumas décadas eles urbanizaram esses bairros e melhoraram de forma notável suas condições de vida”.

A situação descrita por HoIston poderá se repetir nessa nova configuração da vida nacional, sem que seja preciso passar pelo mesmo calvário que vitimou os atores dos conflitos urbanos da década de 70 para cá? Claro que há novas dinâmicas que não estavam presentes entre as décadas de 70 e 90, como a questão ambiental, que certamente trarão outros desafios à solução do drama da moradia. E, como é próprio de um país que teima em cometer os mesmos pecados do passado, estamos longe de construir um consenso de que é um erro econômico continuar expelindo os pobres para morar em regiões distantes e subdesenvolvidas, face ao alto custo de provê-las de infraestrutura.

É preciso que o Estado construa as bases onde serão edificados os instrumentos públicos e privados que garantam uma adequada e justa regulação da renda da terra urbana. Isso permitiria a solução não só do problema de quem não tem onde viver, mas, sobretudo, eliminaria a desigualdade que, até então, assegura aos pobres apenas a possibilidade de morar longe. Por fim, recuperaria o papel do poder público de atuar como agente eficaz na resolução dos grandes dilemas da cidadania.

*Sérgio Leitão é advogado especializado em temas socioambientais e diretor do Instituto Escolhas. Ocupou as diretorias de políticas públicas e campanhas do Greenpeace no Brasil, onde trabalhou entre 2005 e 2015. Fundador do Instituto Socioambiental, Sérgio Leitão foi advogado do Núcleo de Direitos Indígenas, em Brasília, e assessor jurídico do Projeto Estudo sobre Terras Indígenas, desenvolvido no Museu Nacional, no Rio. Artigo publicado originalmente em Arq. Futuro.

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