Caninha, marvada, danada, marafo, pinga, arrepia-cabelo, furibunda, quebra-goela, reza-forte... O “Dicionário folclórico da cachaça”, de Mário Souto Maior, registra mais de 3 mil nomes para a aguardente de cana na boca dos bebedores espalhados pelo Brasil. Esses apelidos, que vão do carinho ao insulto, só demonstram o tamanho da intimidade dos brasileiros com a mais democrática das bebidas nacionais, nosso orgulho tipo-exportação.
Mas todo o apelo popular pode esconder a engenhosidade e a riqueza regional que a cachaça envolve. Dos alambiques de Ivoti (RS) a São Gonçalo do Amarante (CE), das branquinhas translúcidas às envelhecidas de tom amarelo-ouro, há um mundo a ser explorado pelo cachaceiro - aliás, de onde viria o travo pejorativo do termo?
"A cachaça é o destilado mais complexo do mundo, pelo menos quatro vezes mais que o gim. Ela pode ser adocicada, sem acidez e até bastante perceptível no álcool e seca. É natural que haja um tempo para o desenvolvimento do paladar e para a apreciação", diz a especialista Isadora Bello Fornari, a Isadinha.
Algumas dicas para apreciar o destilado como um profissional são mais evidentes. Para começar, cachaça boa não tem partículas nem exala cheiro desagradável. O selo federal no rótulo garante que a bebida não foi batizada nem contaminada com substâncias tóxicas como o metanol. A boa pinga pode ter sutis traços de madeira, vegetais, frutas. E, claro, deve ser reverenciada aos poucos, como as boas coisas da vida.
Confira abaixo as principais dúvidas sobre a cachaça respondidas por dois craques: Isadora e o mixologista Rod Werner.
1) Cachaça é sempre feita de cana?
Isadora: A cachaça é, por lei, produzida somente no Brasil, não pode conter qualquer tipo de infusão - frutas, ervas ou madeiras -, deve possuir de 38% a 48% de álcool e deve ser exclusivamente de caldo de cana fresco (e, não, de rapadura, como algumas aguardentes ou melaço como rum).
Rod: Cachaça é uma bebida destilada do mosto fermentado do caldo de cana e em território brasileiro. Se for feito fora do Brasil é chamado de aguardente de cana, sem usar o nome cachaça.
2) Qual a diferença entre a cachaça branca e a amarela?
Isadora: Qualquer cachaça que apresente substancial alteração de cor e aroma pode ser chamada de ouro ou amarela, e a que não possui alteração substancial pode ser chamada de prata ou branca.
Rod: Todo destilado, ao sair da torneira, é "branco incolor”. A cachaça amarela passou por um período de amadurecimento em barris de madeira.
3) Como diferenciar uma boa cachaça de uma ruim?
Isadora: Tudo é questão de paladar e escolha. A cachaça boa é a que você gosta de tomar. Pode ser adocicada, sem acidez e até bastante perceptível no álcool e seca.
Rod: O destilado bom é aquele que foi engarrafado apenas o coração [a parte nobre da destilação]; o ruim aproveita partes nocivas. Mas isto é um dado técnico. Para o consumidor final o que importa é o sabor, o que não traduz qualidade de produção.
4) Como os diferentes tipos de madeira do barril afetam o sabor final?
Isadora: Cada madeira tem uma característica específica de sabor e aroma. O jequitibá rosa, por exemplo, é delicado e erroneamente considerado uma madeira neutra. Traz aromas amendoados, de frutas e de flores brancas. Já o bálsamo carrega aroma herbal e um paladar mais seco. Amburana, canela, mel e baunilha... E por aí vai.
Rod: Toda bebida posta em madeira irá trocar quimicamente elementos um com o outro. A aguardente, ao sair da torneira, é agressiva, picante, ácida e precisa descansar por um tempo. Dependendo do caso, pode ser engarrafado direto da torneira ou posta para "descansar " em tonel de inox, mas não haverá trocas de sabor. Quando o destilado é posto em madeira, espera-se essa troca. O contato com madeira traz cor, sabor e altera o "corpo" da bebida. A cerejeira tornará mais doce e amarelinha a bebida. Já o bálsamo traz notas marcantes de erva doce, anis. O ipê amarelo pouco interfere no produto de origem.
5) Existe produção orgânica?
Isadora: As produções orgânicas são muitas no Brasil. Mas muitas delas não são certificadas, pois se trata, em 99% dos casos, de produção rural, de famílias que produzem para consumo próprio também. Cito aqui algumas com certificação: Serra das Almas, Sanhaçu e Weber Haus.
Rod: Sim. Ser orgânico é não utilizar fertilizantes, agrotóxicos ou hormônios nos cultivos de alimentos. É uma etapa ligada ao plantio da matéria prima, no caso da cachaça, a cana de açúcar. Ainda assim usar cana orgânica para produção industrial de cachaça, pode não garantir uma melhor qualidade do produto final.
6) É uma bebida muito calórica?
Isadora: É falta de informação pensar que a cachaça, por ser de cana, tem mais calorias. No caso dos fermentados, como cerveja, mesmo que o açúcar tenha sido convertido em álcool, ainda restam glúten e outros sólidos. Em um destilado, você só extrai as substâncias voláteis (álcool, aromas e sabores). Toda cachaça contém aproximadamente de 80 a 110 kcal [a dose], como qualquer destilado.
Rod: Todas as bebidas alcoólicas são calóricas. Em geral, são 7 kcal por grama de etanol, o que me parece bastante calórico.
7) Em que temperatura deve ser tomada a cachaça?
Isadora: A temperatura ideal para se apreciar pura fica na amplitude de 13 a 25 graus. Ouvimos muito falar em “temperatura ambiente”, mas isso é muito abrangente no Brasil. O calor volatiza o álcool e aromas com mais velocidade, e a apreciação fica comprometida. Por isso, servir a cachaça saída da geladeira em uma taça de vinho ou com uma pedra de gelo em um copo old fashion trará uma nova relação entre você e a cachaça.
Rod: Tecnicamente, para um exame organoléptico, 20°. Mas gosto da pinga fresca da geladeira, a 7°. No freezer é exagero. Tudo o que é gelado ou quente demais, ao contato com a língua, inibe as papilas e deixamos de sentir o verdadeiro sabor.
8) Existe harmonização de cachaça com menus, como os vinhos?
Isadora: Já fiz em restaurantes como Origem, Kok, Mocotó e Xapuri. Alguns lugares têm degustação de cachaça como item fixo, com sugestões de comida também, como o Hilda Botequim e o Pirajá.
Rod: Sim. Queijos, castanhas, frutas, carnes são alimentos que podem ser harmonizados com cachaça.
9) O teor de álcool varia muito de uma cachaça para outra?
Isadora: Sim, de 38 a 48%. Uma coisa é a graduação alcoólica, outra é a percepção alcoólica. Os nossos sentidos são conectados e costumam enganar um ao outro. Álcool é diferente de picor, que é diferente de acidez, que é diferente de adstringência.
Rod: O que delimita o teor alcoólico são as legislações de cada país. No Brasil, único lugar do mundo a produzir destilado de cana com o nome de cachaça, a legislação prevê entre 38° vol e 48° vol a 20°Celsius.
10) Cachaças mais puras dão menos ressaca?
Isadora: A culpa da ressaca é da pessoa que bebe, e não necessariamente da bebida. Cachaça, como qualquer bebida, só dá ressaca se for consumida sem responsabilidade, sem beber água, sem estar se alimentando e sem apreciação. Normalmente, a escolha para se embriagar tende a ser a bebida mais barata, de menor qualidade.
Rod: Objetivamente, sim. Ressaca é um mal-estar causado por intoxicação ou por falta de água no corpo. Em ambos os casos, o consumo de álcool pode gerar ressaca. Mas o que seria cachaça mais pura? Imagino que seja uma cachaça na qual foram respeitados os limites da cabeça, coração e rabo [cada fração da destilação]. Onde foi engarrafado criteriosamente o coração. Temos então uma cachaça livre de substâncias indesejáveis. Contudo, o consumo excessivo de bebida alcoólica, ainda que "pura” (lê-se bem feita), pode gerar desidratação.
11) Que tipo de cachaça é ideal para caipirinha?
Isadora: A caipirinha, por lei, é cachaça (a legislação não indica qual), limão, açúcar e gelo. Como temos muitas madeiras, algumas oferecem aromas que são mais indicados para outras frutas.
Rod: Como profissional de bar (e certamente serei apoiado por cachaçólogos e pingófilos de plantão), sugiro que a caipirinha seja feita com cachaça branca e limão.
12) Quais são os outros drinques famosos com cachaça?
Isadora: Rabo de galo [com vermute], maria mole [com conhaque e vermute branco] e as batidas.
Rod: A caipirinha é o coquetel mais famoso no mundo feito com cachaça. Mas sempre existirão as batidas, bem conhecidas do público brasileiro, mas desconhecidas intencionalmente. Também existe a calcinha de nylon [com groselha e leite condensado], o menos conhecido ainda samba em Berlim [com Coca-Cola), da década de 60. Acho que o caju amigo seria o mais conhecido depois da caipirinha.
13) Quanto mais envelhecida uma cachaça, melhor ela fica?
Isadora: Mais uma vez, não existe regra. É uma equação de combinações particulares a cada produto, madeira, produtor... Dependendo do caso, uma cachaça envelhecida demais pode ficar amarga e insuportavelmente tânica.
Rod: Não. Nem pior. Apenas diferente.
14) Dá para fazer cachaça em casa?
Isadora: Existem alambiques pequenos que podem ser comprados. Mas, além disso, precisa do engenho, dornas de fermentação, fonte de calor. Acho mais prático valorizar o trabalho de quem já faz bem. São mais de quatro mil produtores legalizados em todo Brasil.
Rod: Sim. Assim como muita gente está fazendo cerveja em casa. Aliás, muitos brasileiros fazem cachaça em casa. Mas no interior do Brasil. Meu avô fazia.
15) Como disfarçar o hálito de cachaça?
Isadora: Qualquer bebida provoca mau hálito ou deixa um gosto ruim na boca se ingerida inconsequentemente. Se for de procedência duvidosa, ainda mais. Para todos os casos, sugiro beber com responsabilidade: sabendo da legalidade do produto, apreciando devagarinho, respeitando seu corpo. E, claro, escovar os dentes sempre ajuda também.
Rod: Pra quê? Por quê? Como disfarçar o hálito do uísque? Da cerveja? Por que a pergunta?
16) As cachaças mais conhecidas são as de Minas Gerais. Que outros estados têm produções relevantes?
Isadora: As cachaças mineiras têm uma tradição do alambique que se manteve e, por isso, criaram um mito sobre a melhor cachaça ser a de lá. Em uma época em que a qualidade não era levada em conta, elas se destacaram com louvor. Mas o estado de maior produção e exportação hoje é São Paulo. E as cachaças do Sul estão ganhando muito espaço. Antes de pertencer a qualquer estado, a cachaça é brasileira.
Rod: Não saberia se está afirmação procede. Minas Gerais é reconhecidamente um dos principais produtores. Mas o berço da cachaça foi São Paulo. O estado do Rio possui grandes pingas, não só as de Paraty, mas produzimos em Quissamã, Rezende, Rio das Flores, Vassouras. No sul do Brasil temos nomes como a Werner Haus, reconhecida como umas das melhores cachaças já produzidas. Países europeus já conhecem há décadas a Nega Fulô (Rio), Velho Barreiro e 51 (ambas de São Paulo).
17) Existe formação reconhecida de cachacier?
Isadora: Sommelier é um profissional de bebidas. Eu sou especializada em cachaça. Cachacier foi um termo criado pelo [especialista] Mauricio Maia.
Rod: Existe uma universidade em Viçosa, com bacharelado. E, entre Rio e São Paulo, diversos cursos.
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Redação iBahia
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