Rainha do alto astral baiano, Emanuelle Araújo está triste. Quem vê o sorrisão com que a atriz e cantora chega a um café na Gávea para esta conversa nem imagina, mas ela surpreende ao contar que está vivendo o ano mais down de sua vida. O motivo é a perda do pai, em fevereiro. Ele foi o primeiro elo entre Emanuelle e a música. Formavam uma dupla de voz e violão nas festas de família, assistiam juntos aos clipes do “Fantástico” (“Clara Nunes cantando ‘Morena de angola' foi um choque”) e passavam os sábados ouvindo Vinicius de Moraes, Baden Powell e Maria Creuza na vitrola, além dos discos de piada de Chico Anysio e Ary Toledo.
— Ele tinha o humor como salvação. Até em seus últimos momentos de vida, o que nos segurou foram as piadas com a enfermeira — conta. — No enterro, eu e meu irmão imaginávamos as sacanagens que ele falaria. Fazer piada na tragédia é bem da minha família. Mas estou vivendo o ano mais triste da minha vida.
Aos 43 anos, ela sente a necessidade de olhar para trás para seguir em frente. Dia desses, se deu conta de que, ano que vem, faz 20 anos desde que estreou, vestida de Barbarella, à frente da Banda Eva, substituindo Ivete Sangalo. Tinha 20 anos, integrava a companhia de teatro Interarte e já era mãe de Bruna (hoje com 25 anos). Seu próximo projeto também bebe em décadas passadas. Em janeiro, lança disco com canções de Jards Macalé compostas nos anos 1970. “Hotel das estrelas”, “78 rotações”, “Farinha do desprezo”, “Tio Barnabé”, “Movimento dos barcos” e “Quero viver sem grilo”, que batiza o álbum, são algumas. Antes, em novembro, celebra com show os 15 anos da banda Moinho.
Por que gravar um disco com canções de Macalé?
Tenho admiração por ele desde a adolescência. Pelo poeta profundo, pela forma com que fala de amor colocando também a questão social. Decidi gravar o disco às vésperas das eleições. Estava mexida com o que acontecia no país e refletia sobre o que estava fazendo como artista no mundo.
Tem o fato de jogar luz sobre um artista brasileiro importante...
Quero aproximar o meu público da obra dele. Este momento conturbado que vivemos, socialmente e politicamente, gera um diálogo com o que aconteceu há décadas atrás. Precisamos de um movimento cultural pertinente, acredito na arte como revolução. Olhar para trás, pode nos fazer andar pra frente. Ver como sobrevivemos à ditadura, refletir sobre a desconexão entre as pessoas. A gente vive um Brasil partido. Acho que cantando a obra de um artista que me inspira tanto e por quem tenho grande afeto, posso aproximar as pessoas.
Fora o guitarrista brasileiro Guilherme Monteiro, você gravou o disco com dois músicos estrangeiros (Bem Zwerin, baixista, e Bill Dobrow na bateria). Por quê?
Pensei que se gravasse com músicos que conhecem o que Macalé representa, o resultado poderia soar como algo já feito. Músicos frescos com essa linguagem poderiam captar a energia da música.
Passou os dois últimos anos em Nova York. Como foi?
Fiz inglês, estudei com Susan Batson (famosa acting coach). Estava mais interessada no processo de viver fora, estar anônima, com uma mochila e um estojo. Teria feito muito isso se não tivesse tido a Bu tão cedo. Quando ela saiu de casa, olhei para os meus anseios.
Abriu mão de muita coisa pela maternidade? Como foi engravidar aos 16 anos?
Meu pai era sertanejo, machista e, quando engravidei, foi um horror, ficou arrasado, a filhinha dele grávida, o que vão dizer? A crise durou dois meses, aí veio acolhimento. Tinha um namorado há dois anos, ficamos juntos por seis. Nos separamos porque era um “padrão homem baiano nordestino”, e eu queria ser livre para viver a minha arte. Mas a maternidade me trouxe um olhar pouco autocentrado. Quando você tem filho, não dá tempo de ter conflito existencial.
Abortar passou pela cabeça?
Eu era líder de classe, lutava pelos direitos coletivos. Meu discurso era “se engravidar, aborto, não tô pronta para isso”. Quando engravidei, não consegui pensar assim nem por um segundo. Era mais discurso do intelecto do que do coração. Mas sou a favor de que a mulher tenha o direito pelo seu próprio corpo.
Você está nos filmes inéditos “O barulho da noite”, “Longe do paraíso” e no de Pedro Amorim, que ainda não tem título...
Em “O barulho da noite” ( de Eva Pereira ) faço uma mulher amarga e sofrida, que viveu abusos na infância. Fiquei 40 dias de pé no chão, barriga no fogão à lenha. Isso depois de fazer a 2ª temporada de “Samantha” ( série da Netflix sobre uma estrela mirim ), que é glitter e salto alto, um universo diva que sempre esteve perto de mim, mas nunca curti na vida real. Em “Longe do paraíso” ( de Orlando Sena ) vivo uma ativista, líder de agricultores, ameaçada de morte. No do Pedro Amorim faço uma empresária poderosa e gay.
Sua personagem de “Orfãos da terra” tem a ver com você, casou logo, teve filha cedo...
Temos vivências parecidas, mas estruturalmente diferentes. Ela foi criada em padrões machistas, mas não entende isso como machismo. É uma feminista instintiva, questiona por não se adequar. Minha mãe (doutora em literatura irlandesa) é educadora, tem um feminino potente, fui criada assim. O que me interessa é comunicar com pessoas que não têm a cultura do feminino potente, mas não se encaixam no padrão. Tá cheio de mulher assim. E ela tem honestidade emocional, o que mais pedi este ano...
Como assim?
Que a gente seja sincero, sabe? Meu pai tinha falecido e pensei: “Isso vai acompanhar este ano. Tô triste e pronto”. Porque a nossa sociedade exige que a gente esteja sempre ok. Sou uma pessoa alegre por natureza, mas esse está sendo o ano mais triste da minha vida.
Recentemente, disseram que você estava namorando a Andreia Horta porque postou foto com ela no Instagram. Como lida com esses boatos?
Já disseram que namorava a Nanda (Costa), parece que pego todas as minhas amigas (risos). A Andréia é minha irmã. Eu tenho preguiça disso. Por que temos que sexualizar tudo, até o afeto? O que importa se é homem, mulher ou poste? Estamos confusos, tem muita coisa acontecendo, as pessoas não querem olhar para os problemas e a bobagem alivia. Precisamos debater na mesa de bar sobre o menino que foi chicoteado no supermercado (refere-se ao caso do jovem de 17 anos que foi torturado após ter furtado um chocolate em um supermercado de São Paulo).
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Redação iBahia
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