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Memória - O BaVi de Raudinei

O Campeonato Baiano de 1994, mesmo sendo tão longo, foi surpreendente e especial, pois intensificou a rivalidade dos maiores clubes da Bahia

Redação iBahia • 02/06/2020 às 14:42 • Atualizada em 26/08/2022 às 22:41 - há XX semanas

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Durante a pandemia sem futebol a nostalgia ganhou espaço, com reprises de jogos históricos pipocando on e offline. Aí, a TVE resolveu contar a história do Campeonato Baiano de 1994, um especial muito bacana sob o comando de Elton Serra, e me estimulou a resgatar um texto, longo, parcial, apaixonado, sobre minha experiência no BaVi de Raudinei, um dos jogos mais icônicos da quase centenária história do Bahia. O texto que compartilho com vocês aqui, abaixo, fã de futebol, é uma narração divertida - pelo menos pra mim- daquele 07 de agosto especial. Texto que fiz há muitos e muitos anos, ainda sonhando em ser comunicador. Segura, que lá vem textão.

O Campeonato Baiano de 1994, mesmo sendo tão longo, foi surpreendente e especial, pois intensificou a rivalidade dos maiores clubes da Bahia. E me marcou para sempre. De fevereiro até agosto, foram 11 BaVis, com 5 triunfos para cada lado e um empate. Os primeiros clássicos foram desastrosos para o Bahia, inclusive com duas goleadas de 4x0 sofridas para o rival rubro-negro. O Bahia apanhou tanto do Vitória que havia uma piada dizendo que o telefone novo do tricolor era 240-1010 (referência aos placares dos clássicos: 4x0, 4x0, 1x0, 1x0). Foi muita cacetada no juízo.

O Vitória vinha de um vice-campeonato brasileiro brilhante em 1993, com uma base forte. O Bahia tinha feito um brasileirão medonho, só não caiu por conta do regulamento mirabolante da época, que protegia os integrantes dos grupos A e B daquela série A.

O Baianão de 1994 era dividido em 4 turnos. Se um clube vencesse os 4, seria campeão. Se mais de um conquistasse turno, haveria um grupo decisivo com os vencedores, sendo que cada vencedor de turno levaria uma pontuação extra pra fase final- 2 pontos por turno conquistado. Bom, mesmo acabando com a raça do Bahia, o Vitória conseguiu perder o primeiro turno para o Camaçari. No segundo turno não teve jeito, foi campeão, de novo sapecando o tricolor. O Bahia então trocou de técnico, saiu Artur Bernardes e entrou Joel Santana.

No primeiro BaVi de Joel, triunfo tricolor, com dois gols de Marcelo Ramos. Era o começo da reação. O Bahia emendou triunfos em clássicos, venceu os dois turnos seguintes e chegou no triangular final cheio de moral. Até que Dão, do Vitória, apareceu no primeiro BaVi do triangular e deixou tudo para aquele bendito 07 de agosto de 1994.

Domingo lindo de sol em que não acordei porque não consegui dormir. Levantei cedo, botei a fuça no jornal para ler tudo sobre o jogo. Despertei meus pais. Foi uma das poucas vezes que consegui chegar cedo na Fonte Nova dependendo do meu velho. É que apertei tanto a mente dele durante a semana do jogo que ele aceitou sair de casa meio-dia de domingo pra não chegarmos atrasados na partida. Fomos eu, ele e Tadeu, um amigo meu de infância, que por não ter camisa do Bahia, vestiu uma do San Lorenzo de Almagro. Fomos para arquibancada especial, entre a antiga Povão e as cadeiras dos mais abonados. A Especial nesse setor era predominantemente da torcida do Bahia. Só não totalmente porque tinha uma família composta por um pai, três meninos e uma garota no ambiente. Guarde essa informação.

A Fonte Nova, sob o sol do entardecer, foi enchendo. Linda, romântica. Do meu acomodado lugar na especial, via aquele formigueiro de gente tentando entrar pelos portões do Dique. Também reparava nas cores vivas vindas do setor da Bamor, em frente às cabines de rádio. Um tom dourado das peles dos torcedores sem camisa, iluminados pelo sol forte, misturado com os pontos brancos, azuis e vermelhos de bandeiras e camisas. Uma fotografia digna de pintura. Em pouco tempo de apreciação do cenário meu conforto já foi ficando ameaçado. Milhares de pessoas chegando, empolgadas, confiantes, gritavam, curtiam, azoavam. Vi nas mãos de alguns torcedores do Vitória algo que lembrava uma pequena sandália de madeira. Eles batiam uma na outra, fazendo um barulho chato. Minha ansiedade era indescritível. Inclusive para eu ter a oportunidade de mandar eles enfiarem aquelas sandalinhas... na boca…Bom, eu contava os minutos pro clássico começar. Foi quando estouraram os fogos.

Os dois times entraram em campo de uniforme escuro. O Bahia, com camisa tricolor, short azul marinho, meião vermelho. O Vitória de calção preto, camisa com um desenho bem esquisito, vermelha e preta, meiões brancos. Uma confusão visual promovida pelas superstições. Desde que passou a usar o uniforme dois em clássicos, o Bahia venceu os BaVis. O Vitória, que vinha aceitando jogar de branco, de tanto apanhar, resolveu voltar ao seu uniforme principal. E venceu o primeiro clássico do triangular final. O juiz Márcio Rezende de Freitas fez que não viu e tudo estava pronto para o início da partida. E minha miopia que "se exploda", afinal, eu usava óculos para isso, né?

Quando o jogo começou, com a sombra já tomando boa parte do gramado, eu já deveria ter perdido uns 4 kg (dos meus 50 e poucos) só de nervoso. O Bahia, atacando para o gol do Dique do Tororó, começou bem, agressivo e isso foi me acalmando. Até as chances começarem a ser desperdiçadas. Primeiro, Zé Roberto e Uéslei saem livres na frente do goleiro Roger, se atrapalham com a bola e no fim, um chute sem força de Marcelo morre nas mãos do arqueiro. Depois, um suspiro daqueles: jogada Uesléi pela direita, bico da grande área, ele cruzou na cabeça de Marcelo Ramos. Roger se antencipou e tirou com um soco. A bola se ofereceu a Paulo Emílio. O baixinho, 11 do Bahia, chegou soltando a perna esquerda. Bateu seco, cruzado, rasteiro. Roger mal posicionado. Esperei ela beijar a rede lateral esquerda do gol para explodir em alegria. Espero até hoje. A gorduchinha, caprichosa, passou rente à trave e arrancou um " uhhhhhh" daqueles de puxar cânticos da torcida. Em uma outra jogada, pela esquerda, chute cruzado que Zé Roberto, de carrinho, errou e foi ele, em vez da bola, parar dentro do gol. O Bahia era mais time, o gol parecia questão de tempo. Minha ansiedade não se confortava com isso, queria ver logo o placar a nosso favor.

Aí, nos momentos finais do primeiro tempo, bola cruzada na área tricolor. A zaga tira. No rebote, fora da área, Pichetti, atacante rubro-negro, cabeceia em direção à zona do agrião de novo. A zaga do Bahia não consegue afastar, Advaldo apenas raspa a bola e ela cai nos pés de Dão. O maldito Dão. Chute forte, seco, perna direita certeira. Jean, goleiro tricolor, parado. Rede do gol da ladeira estufada e eu perplexo, assim como na semana anterior. Gol deles. Torcida, em minoria, explode. Começo a ouvir os gritos de "Bi, bi, Bahia é bicha, terererê". A musiquinha dos rubro-negros só me incomodou até eu perceber um grito de gol contido perto de mim. Aquela família de um pai , três filhos e uma filha, que eu observei no início do texto tinha uma infiltrada. A garota, mais velha que os irmãos, era fã de Roger. Eu e todo o setor de arquibancada especial arranjávamos uma inimiga.

Meu pai, otimista, me disse: "fique tranquilo. Jogamos muito esse primeiro tempo. Vai ser 3x1 pra gente no segundo." Longos 60 minutos de espera.

Segundo tempo começa. O Bahia tinha alteração: Raudinei no lugar de Maciel, volante. Só Souza, a partir dali, faria a contenção. Naquela época eu tinha a seguinte ilusão. " O Bahia é muito forte, só estava distraído. Agora que tomou o gol, vai despertar sua fúria e mostrar todo seu futebol." Pobre garoto. O segundo tempo só foi do Bahia nos primeiros minutos. Uma falta na entrada da área que Marcelo Ramos recuou para Roger e uns escanteios sem efeito foram tudo de produtivo no segundo tempo.

A foto que ilustra o post é do próprio Raudinei, o autor do gol em 1994, foto enviada por ele em 2020, pelo celular, para o site do Futebol S/A, no dia da postagem. Viva a tecnologia!

O Vitória defendia bem e começava a ameaçar o Bahia nos contra-ataques. A cada bola cruzada na área para a defesa de Roger, a menina perto de mim, já confiante e " soltinha", gritava para pirraçar os irmãos (e umas 5 mil pessoas em volta) : " Vaaaai Roger".

Eu já tinha tido uns baques anteriores com o Bahia que me faziam acreditar que era bem possível não sair daquele jogo gritando campeão. Meu pai se entupiu de fichas de cerveja e de troco me arranjou uns pirulitos de iogurte. Horrorosos, por sinal. Eu não queria, queria gritar gol.

O tempo foi passando, o desespero batendo. O que batia cada vez mais também era uma sandália na outra na mão de cada torcedor da Leões da Fiel (a maior torcida organizada do Vitória à época). Eles fazia aquele barulhinho irritante e cantavam aquela outra música mais irritante e debochada ainda. A voz da menina perto de mim eu nem preciso descrever como já "amava", né?

Bateram os 30 minutos do segundo tempo, comecei a querer não ver os ataques do Vitória. Me apoiei numa coluna da Fonte Nova, lá em cima, na arquibancada especial e só via o gol defendido por Roger. Dei as costas para o gol de Jean até Dão, o maldito, raspar uma bola de cabeça e deixar Fabinho, atacante dos cabelos de fogo, chutar de primeira, na cara de Jean. Bola caprichosa, pra fora. Aquele silêncio angustiante do pior que estava por vir. Coração acelerado. Eu não poderia tirar os olhos do jogo. A cada vinheta da rádio Sociedade, que anunciava o tempo de partida, que eu conseguia escutar lá na arquibancada, a vontade de chorar aumentava. Tadeu, meu amigo, estava lá, quase indiferente, aceitando o placar. Meu pai falava que o gol estava por vir. Eu puxei um daqueles pirulitos de iogurte pra tentar distrair o juízo. O Bahia não atacava mais. As possibilidades de gol iam desaparecendo. Naldinho já tinha entrado no lugar de Zé Roberto e nada tinha evoluído.

Aí o Vitória pegou um contra-ataque em que Dão (ou Ramon, não lembro) carregou a bola no três contra dois. Era hora do golpe de misericórdia. Advaldo, um dos "dois" do Bahia, tropeçou e desabou na frente do jogador rubro-negro. Ficou fácil. A bola foi rolada com açúcar e afeto para Alex Alves. Bico da pequena área. Jean saiu desesperado de carrinho, Alex chutou rasteiro. A bola bateu na bunda do goleiro tricolor e foi na direção da outra trave, já pra entrar. Eis que Advaldo, recuperado da queda, se joga na bola e chega nela antes de Fabinho, que só teria o trabalho de empurrar para o gol. A pelota afastada pelo zagueirão tricolor cai nos pés de Uéslei e o Bahia livrava-se de ter esse jogo como uma história pra não contar.

Eram 43 do segundo tempo. Confusão na linha de fundo. Raudinei recebe um carrinho forte de Dourado e quando a bola sai a escanteio, pisa no volante rubro-negro. Márcio Rezende só contemporizou. Os jogadores não. Começou um furdunço incrível perto da banco e da torcida do Vitória. Gritos de " time de p…, time de p…." . " Bi, Bi, Bahia é bicha" . Era a glória rubro-negra. Torcida do Bahia (a minoria que já saia do estádio, resolveu segurar a saída pra ver o escanteio.). A maioria dos tricolores, calada, estava lá, firme e forte, pra sofrer junto. Não. Na verdade, acreditando em um milagre.

Meu pai me disse nessa hora da confusão: "o gol é agora!". Era só nisso que eu poderia acreditar mesmo. Confiei. Depois de uns dois minutos de tumulto, escanteio cobrado. A zaga afastou, Paulo Emílio chegou chutando, a bola explodiu na zaga de novo. Foi na direção do campo do Bahia. Esfriei as expectativas. O maluco do Missinho, zagueiro tricolor, recuou para o goleiro Jean, que estava na intermediária. "Jogo nos acréscimos e o delinquente do zagueiro recua pro goleiro", pensei. Peguei o pirulito de iogurte e devolvi para a boca (respeite o "lá ele" infantil, eu tinha 13 anos).

Jean devolveu a bola pra Missinho. Missinho chutou pra frente todo mascado. Advaldo, num gesto desengonçado, se abaixou pra jogar a bola pra frente de cabeça. Ela subiu na intermediária. Souza, único volante, raspou de cabeça. A bola se ofereceu, na entrada da área, a um jogador do Bahia não-identificável àquela altura da partida (era Raudinei). Ele, quase caindo, chutou a bola forte, de esquerda. Ela passou embaixo de Roger e entrou quase no meio do gol. A rede linda da Fonte Nova estufava lá embaixo, depois da barriguinha. No reflexo olhei pro bandeira. Ele correu pro meio. Era inacreditável. Gol do Bahia. A explosão foi algo indiscutivelmente impossível de explicar escrevendo. Quase engasguei, joguei tudo pra cima. Meu pai correu pra um lado. Eu corri pro outro. Saí abraçando Deus e o mundo na arquibancada. Cheguei perto da fã de Roger e disse palavras nada gentis. O pai dela, comemorando, nem ligou. Abracei os irmãos dela. Tadeu tinha sumido. Estava nas grades do alambrado, xingando os rubro-negros. O barulho era delicioso. Eu corri pra acompanhar Tadeu nos impropérios desferidos ao outro lado das cabines de rádio e TV. Olhava pra um lado e para o outro chorando.

O jogo recomeçou, o ataque do Vitória jogou a bola na área, mas Jean ficou com ela. Que sensação maravilhosa. O hino do Bahia começou a explodir na arquibancada. Jean jogou a bola pra frente, a torcida só olhava para o mineiro de preto que estava mandando no jogo. Ele levantou os braços e aí reencontrei meu pai. Nos abraçamos forte, berramos, Tadeu girava a sua camisa do San Lorenzo. Todos cantavam, menos a fã de Roger, que passou por nós, em direção ao corredor do estádio, indignada. A torcida cantava " Bi, Bi, Bahia é Bi, tererêrê". Eu acompanhava com gosto. Depois veio uma outra " Bem que eu te avisei, o Vitória se f… com um gol de Raudinei". Saímos da Fonte em êxtase. A última lembrança que tenho daquele dia, depois do jogo, é de um torcedor tricolor, bêbado, querendo descer rolando aquela ladeira que liga o Campo da Pólvora ao Dique do Tororó, no muro avermelhado. Eu só lembrava dos primeiros clássicos, dos números de telefone do Bahia que tive que ouvir umas centenas de vezes, do sofrimento do início do ano. E que tudo aquilo valeu a pena para transformar o gol de Raudinei em um dos momento mais espetaculares de minha vida como torcedor do futebol. Dentro da minha amada Fonte Nova.

Ficha técnica do jogo:
Bahia 1x1 Vitória
Local: Fonte Nova

Árbitro: Márcio Rezende de Freitas/ FIFA-MG 

Auxiliares: Raimundo Nascimento e Wilson Paim 

Renda: R$ 240.730,00 

Público: 97.200 pagantes

Gols: Dão, aos 44 do 1º tempo e Raudinei, aos 46 do 2º tempo 

Cartão Amarelo: China, Roger, João Marcelo, Rodrigo, Serginho e Raudinei. 

Cartões Vermelhos: Souza e Gelson 



Bahia: 
Jean; Odemilson, Advaldo, Missinho e Serginho; Maciel (Raudinei), Souza, Ueslei e Paulo Amílio; Zé Roberto (Naldinho) e Marcelo Ramos. 
Técnico: Joel Santana 



Vitória: Roger; Rodrigo, João Marcelo (Gelson), China e Roberto; Dourado, Ramos e Giuliano; Alex Alves, Dão e Pichetti (Fabinho). Técnico: Sérgio Ramirez

*Cáscio Cardoso é publicitário, apresentador, comentarista esportivo e produtor de conteúdo

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