O soldado da 27ª Brigada de Infantaria Paraquedista sempre sonhou em ingressar no Exército e seguir a carreira militar. De família pobre, morador da Zona Norte do Rio, passou em todas as provas, recebendo as melhores notas nos exercícios físicos e nos saltos aos quais foi submetido durante o intenso treinamento. Queria copiar os passos do tio, capitão da Brigada Paraquedista.
Há duas semanas, numa segunda-feira, cabeça baixa, ele contou que desistiu de tudo depois de passar por uma sessão de trote aplicada por um grupo de 18 militares, todos superiores. Uma espécie de batismo sádico, no qual o calouro é submetido a um intenso espancamento com os pés e mãos amarrados pelos veteranos. No caso do soldado, sem nenhuma chance de defesa.
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Durante cerca de dois minutos, o militar conta que levou chutes e foi espancado, com uso de paus, pedaços de fios e de plásticos pelos superiores. No fim, um dos agressores ainda gritou: “Soltem o cachorro. Soltem o cachorro”. Neste momento, um cabo, conhecido no batalhão pelo apelido de “Cachorro Louco”, partiu em direção ao soldado simulando ser um cão e mordendo violentamente suas nádegas, arrancando pedaços.
Quando tudo acabou, restaram inúmeras marcas e ferimentos pelo corpo. Já em casa, ele percebeu um sangramento no pênis, que mais tarde levou à extração de um dos testículos por médicos do Hospital Central do Exército (HCE), onde foi atendido.
"Fiquei muito machucado. Tive que extrair um testículo e os médicos disseram que o segundo está comprometido e também poderá ser extraído. Não vou mais conseguir saltar ou pular de paraquedas. Além disso, estou sob tratamento psiquiátrico e psicológico para tentar superar o que aconteceu. Eu sonhava em ser militar da Brigada Paraquedista. Me esforcei para passar nos testes. Agora não quero mais. Não tenho mais condições", afirmou o militar, pedindo para não ser identificado.
O caso do soldado não é o único. Nas unidades militares do Rio, os registros são recorrentes. O próprio Exército informou que entre 2014 e 2016 investigou cerca de cinco ocorrências de maus-tratos, lesão corporal e outros excessos cometidos em unidades militares do Estado do Rio. Já o Ministério Público Federal revelou que a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio está acompanhando outros cinco registros de maus-tratos em unidades militares do Rio, com a suposta violação de direitos humanos.
"O que aconteceu com o militar não foi um caso de agressão ou maus-tratos. Foi tortura. Ele foi submetido a um intenso espancamento com o pés e mãos amarrados, sem nenhuma condição de reação", afirmou o advogado Marcelo Figueira, que foi procurado pela vítima e agora move uma ação de indenização contra a União na 27ª Vara Criminal do Rio. "Estou pedindo reparação por todos os danos físicos e psicológicos que meu cliente sofreu."
Oito cabos envolvidos na agressão foram afastados
Em nota, o Exército afirmou que o caso do militar foi apurado em um Inquérito Policial Militar (IPM nº 04/2016) instaurado pelo comandante da 27ª Brigada de Infantaria Paraquedista e que gerou o indiciamento de oito cabos envolvidos. "Todos os militares indiciados no referido IPM foram licenciados em 28 de fevereiro de 2017”, diz o texto da nota. A Justiça Militar da União, por outro lado, recebeu a denúncia feita pelo Ministério Público Militar em 14 de março de 2017, o que gerou um processo em curso na 3ª Auditoria da 1ª Circunscrição da Justiça Militar. A audiência de conhecimento está agendada para o próximo dia 10 de maio de 2017.
O Comando Militar do Leste (CML) ressaltou ainda que o Exército “não compactua com qualquer tipo de irregularidade, repudiando veementemente atitudes relacionadas a maus-tratos, que contrastam com a imagem de uma instituição conhecida e respeitada pela seriedade e transparência no trato de assuntos ligados à atividade militar”. Revelou ainda que todos os casos dessa natureza são imediatamente apurados pelos comandantes de organizações militares, em Inquéritos Policiais-Militares (IPMs): “O envolvimento de militares do Exército em delitos de maus-tratos ocorre de forma pontual e isolada. Sempre que há denúncias, a instituição investiga e encaminha à Justiça Militar, a quem cabe julgar e aplicar penas”.
O soldado contou que se alistou no Exército como voluntário em 2015 e queria servir na Brigada de Infantaria Paraquedista. Depois de passar nos testes físicos e práticos, foi aceito na unidade como soldado. O engajamento foi efetivado em maio de 2016.
"Foi aí que começou meu inferno. Fui avisado do trote, conhecido como ‘‘baco”. Comecei a sofrer terror psicológico e todo dia fugia do trote, até que um grupo me agarrou e me levou ao alojamento dos cabos. Fecharam as portas e todas as janelas", disse o militar.
Imobilizado, teve os pés e mãos amarrados até ser levado para o centro do alojamento. O espancamento começou com um grito e 18 militares portando pedaços de paus, cordas e fios. "Quando acabaram, disseram que era para eu ficar calado e não denunciar ninguém", relatou.
Segundo o advogado, o militar foi mais visado por ter porte físico avantajado: "Ele sofreu mais que os outros por ser muito forte. Chegaram a avisar antes que com ele seriam mais severos do que de costume".
O militar é lotado na 2ª Companhia da 27ª Brigada de Infantaria Paraquedista, em Deodoro, onde há 60 soldados. Todos deveriam ser submetidos ao trote.
"No dia que me espancaram, outros soldados também passaram pelo mesmo castigo. Ser agredido violentamente por 18 militares durante dois minutos pode parecer pouco para quem bate. Para quem apanha parecia uma eternidade", afirmou.
Justiça Federal considerou lesão corporal
As agressões sofridas pelo militar foram comunicadas no ano passado como um caso de tortura ao Ministério Público Federal do Rio (MPF). A denúncia acabou gerando um processo na 6ª Vara Federal do Rio, mas não chegou a ser julgado. A juíza titular, Ana Paula Vieira de Carvalho, considerou que o caso se trata de lesão corporal e declinou a competência da Justiça Federal, encaminhando o processo à Auditoria Militar. Procurada pelo GLOBO, a procuradora Ana Paula Ribeiro Rodrigues, do MPF, não se manifestou.
Em 2015, um levantamento do GLOBO nos processos da Justiça Militar do Rio mostrou que em dez anos, 299 casos em unidades militares das Forças Armadas do Rio foram julgados. Eram relatos graves de maus-tratos e lesão corporal nos quartéis do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, todos praticados por instrutores durante treinamentos. As seguidas denúncias de excessos, que já levaram militares à morte durante treinamento, provocou reação: a Procuradoria-Geral da Justiça Militar, em Brasília, publicou uma recomendação nacional sobre o treinamento e os cursos dados a tropas especiais, bem como os treinamentos especiais destinados às tropas. Nela, lembra aos militares que eles deveriam evitar o castigo físico e o trote durante os exercícios.
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Redação iBahia
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