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Quem tem medo da literatura?

Censura ao livro 'O Avesso da Pele', de Jeferson Tenório, é vista como tentativa de silenciar o debate nacional acerca do racismo

Ricardo Ishmael • 22/03/2024 às 7:00 - há XX semanas

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Não se falou noutra coisa nas últimas semanas. Programas de TV, grupos de WhatApp e, sobretudo, redes sociais ebuliram com as notícias dos sucessivos ataques à obra 'O Avesso da Pele', do celebrado escritor Jeferson Tenório. Alvo de movimentos conservadores, o romance destaca, entre outros aspectos, a sexualidade das personagens e esse parece ser, numa análise apressada, o principal motivo das ofensivas. Pressionados por grupos de pais e mães, e até por quem se diz “ativista”, governos estaduais se lançaram numa cruzada contra o livro, que passou a ser retirado de escolas do Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul.


				
					Quem tem medo da literatura?
Censura ao livro 'O Avesso da Pele', de Jeferson Tenório, é vista como tentativa de silenciar o debate nacional acerca do racismo. Foto: Divulgação

O próprio Tenório nos lembra, em recente entrevista a um programa de TV, que essa não é a primeira vez que livros são alvo de censura no Brasil e fora dele. Ataques à liberdade de expressão vitimaram, inclusive, a Bíblia, durante muito tempo impedida de ser publicada em línguas que não fosse o latim, a fim de se evitar “interpretações equivocadas” do texto tido como sagrado.

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Por falar na Bíblia, obras com conteúdo religioso ou posicionamento político ocupam o topo da lista dos considerados “livros perigosos” e, por isso, apreendidos e destruídos no século passado. Só nos Estados Unidos, país repetidamente citado como um “modelo de democracia”, 1.650 títulos foram banidos de instâncias públicas desde julho de 2021.

Avançando no tempo e no espaço chegamos à nossa Bahia. Na década de 1930, período histórico conhecido como Estado Novo, a ditadura capitaneada por Getúlio Vargas recolheu e queimou na fogueira quase 2 mil livros de autores considerados “simpatizantes do comunismo”. Jorge Amado era a bola da vez.

O recém-lançado Capitães da Areia, já um sucesso desde a sua estreia, teve 808 exemplares devorados pelas chamas em Salvador. Décadas depois, nos anos seguintes ao Golpe de 1964, mais de 200 livros foram banidos pelo AI-5, o mais tenebroso entre os tenebrosos momentos da ditadura militar. Editoras foram atacadas e autores censurados pelo Estado brasileiro, entre eles, só para citar um nome, Ignácio de Loyola Brandão.

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Censura ao livro 'O Avesso da Pele', de Jeferson Tenório, é vista como tentativa de silenciar o debate nacional acerca do racismo. Foto: Carlos Macedo/Divulgação

Voltemos ao 'O Avesso da Pele'.

Para alguns estudiosos, a perseguição ao livro de Jeferson Tenório, vencedor do Prêmio Jabuti em 2021 na categoria “Romance de Ficção”, não mostra apenas uma reação da massa conservadora aos “aspectos sexuais” da vida das personagens.

Essa seria, em verdade, uma cortina de fumaça. Ou, para usarmos uma expressão muito comum por aqui, “o buraco é mais embaixo”. No livro, Tenório dá protagonismo a Pedro, jovem negro que perde o pai numa desastrosa abordagem da polícia. A partir desta tragédia, tão comum a tantos brasileiros, especialmente aos negros, Pedro se lança numa busca por resgatar o passado da família. Termina por conectar-se aos caminhos percorridos pelo pai e, assim, compreende melhor a sua própria vida.

A trajetória de Pedro é, em suma, a denúncia das crueldades patrocinadas pelo racismo nosso de cada dia: a violência que extermina corpos negros, os estereótipos ligados à negritude (o negro bem dotado e bom de cama), os abalos psicológicos vividos por pessoas negras numa sociedade racista. Esse sim, defendem especialistas, seria um dos verdadeiros motivos para o recolhimento do livro.

Afinal, para os ultraconservadores brasileiros, o racismo não passa de “mimimi”. Sob o pretexto de proteger os estudantes do “vocabulário de baixo nível” presente na obra, como alegou a diretora de uma escola do Rio Grande do Sul, perde-se a oportunidade de abordar temas fundamentais. Hubert Alquéres, vice-presidente da Câmara Brasileira do Livro, resume a questão: “Eles [os jovens] não estarão protegidos se ficarem confinados em uma redoma de vidro moralista.”

P.S.: O título da coluna de hoje é a reprodução de uma pergunta feita a Tenório durante a entrevista mencionada no início deste texto. “Quem tem medo da literatura?”, quis saber a jornalista. “Acho que as pessoas que têm medo da vida”, respondeu ele.

Imagem ilustrativa da coluna Clube do Livro
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