“Você não pode ganhar uma corrida num Fusca 73 se o seu concorrente estiver numa Ferrari”. Assim, Sérgio Brito, 27 anos, resume a lógica da política de cotas das universidades públicas, responsável pelo salto que ele deu entre a escola estadual deputado Júlio Virgílio, na Ilha de Itaparica, e o curso de Música da Universidade Federal da Bahia (Ufba). “Não quero ser diferente nem melhor. Quero ser só mais um, que estuda, trabalha e pode ajudar a família”.
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Ícaro, da primeira turma de cotistas de Medicina, está prestes a se formar |
Sérgio entrou na Ufba no primeiro ano da implementação das cotas. Filho de uma professora e um ambulante, é o único da casa a chegar à universidade. Chegou a perder o primeiro vestibular, mas não desistiu. “Sempre quis tentar, mas não sabia como, não tinha informação. Só arrisquei a primeira vez porque havia isenção de taxa. No ano seguinte, com as cotas, vi que tinha chance real”, lembra. E foi por pouco: Sérgio foi o último aprovado na lista do vestibular. No entanto, depois de um ano, já estava adaptado à nova rotina e alcançou a terceira maior pontuação da turma. Hoje, ele cursa o mestrado em Etnomusicologia, também na Ufba, dá aulas particulares de musicalização e já planeja o doutorado para o próximo ano. “A cota não significa que você é menor, mas sim que concorda em competir com quem tem a mesma escolaridade que você”, diz. As cotas estão completando sete anos. Na Ufba, elas foram aprovadas pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Consepe) em abril de 2004 e implementadas no processo seletivo de 2005. O sistema prevê que 36,55% das vagas sejam para quem cursou pelo menos um ano do ensino fundamental e todo o ensino médio em escola pública e se declare preto ou pardo; 6,45% para quem tenha estudado em escola pública e se declare de outra etnia e 2% para índios e descendentes.
Avaliação - Para a coordenadora e professora do Centro de Estudos Afro Orientais (Ceao), Paula Barreto, o sistema tem funcionado bem, mas ainda há muito a ser feito. “A proporção de estudantes negros tem aumentado no ensino superior, mas a universidade precisa oferecer estrutura para essa demanda. Essas pessoas vêm normalmente de uma família com renda menor, então precisam de uma boa biblioteca, material didático mais barato e programas que apóiem a permanência”. O programa aprovado pelo Consepe previa ações de preparação do candidato, acesso à universidade, permanência e pós-permanência, além da criação de um comitê de acompanhamento. Segundo o pró-reitor de graduação da universidade, Ricardo Miranda, isso vem sendo construído. “Nós temos programas de permanência, mas sempre vai haver quem diga que não é suficiente. E uma vez tendo a oportunidade de estudar na universidade, já não se nota a diferença entre o estudante não cotista ao final do curso”, afirma.
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Taciana hoje cursa mestrado na Universidade do Estado da Bahia (Uneb) |
No curso de Sérgio, por exemplo, entre 2005 e 2010, 62 alunos entraram por cotas e apenas dois abandonaram a faculdade. Em Comunicação, 330 alunos entraram e 51 abandonaram. Em Medicina, foram 245 matriculados e13 evadidos. Questionado nos primeiros anos de implementação, o desempenho desses estudantes vem sendo acompanhado de perto, e uma avaliação geral está prevista para 2014, quando o sistema completa dez anos. “Em um primeiro apanhado não se nota diferença (entre cotistas e não cotistas). Muitas vezes, o esforço e a força de vontade compensam alguma deficiência que o aluno possa ter tido”, diz Miranda. Ícaro Luís Vidal, 24, é um exemplo. Ex-aluno do Colégio da Polícia Militar, e agora prestes a terminar o curso de Medicina, ele afirma que sua única dificuldade foi conciliar horários. Nos primeiros anos de faculdade fez também o curso técnico de Química no Cefet (hoje Ifba) e deu aulas particulares. Depois passou em concurso público do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e hoje é perito técnico da Polícia Civil. Ganha cerca de R$1.800, dedicados principalmente a manter-se na faculdade. “Só comecei a comprar livros porque trabalhei”, diz. Taciana Garcelin, 26, é outro caso de dedicação. Ela cursou Comunicação na Ufba e nunca enfrentou uma prova final. Hoje, faz mestrado da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). “Eu me dediquei muito e estudei muito pra entrar. Dizem que as cotas acabam tirando o valor de quem estudou mais. Mas acho que ela joga limpo, porque as pessoas competem com aquelas que viveram a mesma realidade. É mais justo”.
Entrevista/Ricardo Miranda, pró-reitor de graduação da Ufba As cotas mudaram a cara da universidade pública, mas não podem durar para sempre. Essa é a análise do pró-reitor de graduação da Ufba, Ricardo Miranda.
Qual avaliação o senhor faz das cotas neste momento? A avaliação global que fazemos é que uma houve uma mudança na cara da Ufba. As pessoas que não podiam ter acesso à universidade pública passaram a ter acesso, e isso traz a possibilidade de uma justiça social mais razoável. Temos segmentos da sociedade que historicamente foram colocados à margem e ao adotar essa política a Ufba tenta cumprir com o que ela pode.
Além do acesso, a universidade deveria promover ações de permanência e pós-permanência. O que foi feito? Nós temos programas de permanência, mas sempre vai haver quem diga que não são suficientes. A verba para a assistência estudantil tem ampliado muito, temos bolsas, auxilio-moradia, material didático e contamos com programas do governo federal de assistência estudantil. Estamos discutindo o ingresso por meio do Enem para o vestibular de 2013 e tudo indica que adotaremos isso.
E como está o desempenho dos alunos cotistas? Estamos fazendo um levantamento rigoroso tendo em vista a avaliação dos dez anos, mas num primeiro apanhado não se nota diferença entre cotistas e não-cotistas. Temos inclusive estudantes de pós-doutorado que estão analisando as cotas e não se percebe uma grande diferença. Queremos fazer isso de modo mais detalhado para balizar a discussão.
Já há alguma mudança prevista para o sistema? Tem gente que questiona a participação das escolas técnicas e dos colégios militares, por exemplo. Há alunos de povoados que nem tem rede municipal e estudam em escolas filantrópicas, mas não têm direito à cota. Nos perguntam sempre se isso não é injustiça. O exame supletivo também é algo a ser considerado, porque abre espaço para fraude, mas aí as pessoas entram com ação na Justiça e argumentam que é a situação é ainda pior do que quem estudou na escola. Uns acham que sim, outros que não, e aí realmente só com o debate.
O que o senhor enxerga de negativo nas cotas? Quais os problemas do sistema atual?Não dá pra ter uma política que cumpra 100% a intenção de todos. Mas os pontos positivos são muito superiores aos negativos. O ideal vai ser que a gente não precise mais de cotas e não queremos que ela seja perene. A questão fundamental é que o ensino público seja prioritário e de qualidade.
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Único da família na universidade, Sérgio teve nas cotas uma chance |