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Em edições passadas desta coluna pisamos e repisamos a questão de como o brasileiro despreza as regras, e como se tornou esporte nacional contorná-las e violá-las. O desrespeito às regras parece conferir aos contumazes violadores ares de superioridade, começando pelo trânsito, onde sempre há um “espertinho”, aquele mais inteligente, mais capaz e superior aos demais que consegue furar a tal fila do cruzamento. Entra na frente de todo mundo e jacta-se do seu feito. Se este tipo de prática contribui ainda mais para a incivilidade no trânsito, que acaba prejudicando a todos, esta compulsão para violar regras espraia-se pela sociedade, conferindo “mérito” a quem contorna as regras. Esta compulsão, que namora com outro fenômeno, que é a corrupção - que nada mais é do que um estágio mais avançado daquela, permeia todos os segmentos da sociedade, seja na vida privada, seja nos negócios. Em geral, associamos variados adjetivos às regras que, coitadas, nunca vêm sozinhas. São regras excessivas, que tiram a flexibilidade, tiram a graça, engessam, são estúpidas e causam prejuízo, para citar apenas alguns de seus companheiros. Definitivamente, o brasileiro não gosta de regras, mas sabemos que o japonês segue, como tivemos a oportunidade de testemunhar, quando um grupo de torcedores japoneses encarregou-se da limpeza de seus locais em um estádio da Copa, após a partida. Mas por que fizeram isto ? Não estavam fora do seu país e não entenderam que aqui ninguém limpa nada ? A explicação pode ser mais simples, a obediência às regras estaria programada, entranhada no âmago do japonês, e por ser algo programado, limpar o estádio não lhe causa sofrimento. Mas deixemos esta questão para os sociólogos e psicólogos por ora... Voltando ao mundo das regras, sabemos que uma parte da rejeição do brasileiro à regra é uma forma, ainda que isto explique apenas parcialmente uma questão tão complexa, de desafiar o Estado. Uma outra parte se deve mesmo à contumaz capacidade que o Estado brasileiro tem de criar regras virtualmente impossíveis de seguir e acompanhar. De outra forma, sabemos intuitivamente que a obediência a um bom conjunto de regras tende a beneficiar o coletivo, ainda que cerceie alguma “liberdade” individual. Aparentemente o brasileiro parece perceber as regras apenas pelo lado do cerceamento da sua liberdade individual, um vício que nosso Estado, contumaz violador de direitos, em todos os regimes, exercitou ao longo de seguidas ditaduras, criando uma espécie de aversão à ordem. Porém, esta aversão às regras nubla a visão de quem procura definir procedimentos eficazes. Podemos retirar da vida real alguns exemplos. Vejamos o caso de uma loja que concede desconto especial a um determinado cliente. Sabemos que, se tal desconto for tornado público, ensejará a prática de algo que amamos no Brasil, que é a isonomia. Uma regra que define um procedimento neste caso seria não conceder desconto em hipótese alguma, ainda que se percam vendas. Este é apenas um exemplo de regra rígida que determina um procedimento cujo objetivo é evitar um prejuízo maior. A regra de proteção do lojista seria publicar que tal desconto valeria apenas para um determinado número de clientes que chegassem primeiro. No caso da legislação trabalhista, o cuidado deve ser ainda maior. Alguns juízes aparentemente entendem que o fato de responder e-mail da empresa a partir de casa, fora do horário de expediente, caracteriza hora-extra. Este tipo de interpretação vem inibindo a prática do trabalho em home-office, dado que a legislação trabalhista, extremamente rígida, pune empresas que adotam práticas distintas do ideário da Justiça Trabalhista. Poderíamos enumerar um sem número de regras derivadas deste quase confronto entre a legislação trabalhista e a atividade empresarial. No âmbito de nossa discussão, contudo, cabe entender que a definição de regras rígidas e falta de flexibilidade de muitas empresas nas questões relacionadas às novas formas de trabalho está relacionada ao risco de sofrerem reveses no âmbito trabalhista. Regras muitas vezes consideradas rígidas, visam proteger a empresa de um processo de dimensões catastróficas. Aventemos um evento mais palpável, que se aplica ao caso de empresas de desenvolvimento de software. Aqui mora a tentação de se lançar sempre o novo produto o mais rapidamente possível, à frente da concorrência, entretanto, regras muito rígidas cercam o procedimento de liberação de softwares para a comercialização. No caso das empresas de desenvolvimento de software talvez nos deparemos, por mais incrível que possa parecer, com a maior rigidez e obediências às regras e procedimentos de liberação de produtos. Afinal, não é difícil imaginar o retrabalho derivado de um grande recall de software, e a enxurrada de reclamações advinda de um software que contenha um pequeno erro de código. Coloque-se então no lugar de um engenheiro de software que é responsável por softwares da área financeira. Quantas regras e procedimentos ele não deverá seguir ? Desta forma, podemos extrapolar este pensamento para todas as áreas e não será difícil também imaginar os prejuízos que desobediências às regras podem causar. Embora “contornos” possam proporcionar um ganho de tempo imediato em um determinado instante, em outro momento podem causar um estrago de proporções inimagináveis. É por isto que muitas corporações americanas sediadas no Brasil preferem sacrificar agilidade e flexibilidade em função de regras rígidas que procuram evitar um prejuízo catastrófico no futuro. Contudo, regras boas são aquelas que podem ser seguidas e não provoquem uma contradição sistemática entre áreas, metas e objetivos de uma empresa, resultando em confronto permanente. Quando isto ocorre, teremos o pior dos mundos. Mas o pior mundo mesmo, é aquele que o imaginário do brasileiro concebe, que é o mundo sem regras. Este não somente seria pernicioso, como levaria ao fim definitivo da civilização. O brasileiro ainda se ressente de um passado cujos valores morais foram contaminados pela ditadura, mas passada uma geração é hora de virar a página e começarmos a incorporar as melhores práticas civilizatórias. Talvez então, os “espertinhos do trânsito” finalmente compreendam que eles apenas contribuem para disseminar a doença antissocial que atenta contra o coletivo e aceitem que quando todos sacrificam um pouco do seu suposto privilégio individual, o benefício coletivo é muito superior a esta pequena perda, e que todos saem ganhando, em todos os sentidos. Se conseguirmos incorporar as boas práticas, e regras enxutas e objetivas nos campos do governo, nas empresas, escolas, em casa e na arena social, talvez venhamos a nos parecer um pouco, mas somente um pouco mais, com os japoneses do estádio de futebol.
| Sérgio Sampaio E-mail: [email protected] Consultor de TI da ValoRH. Engenheiro, empresário da área de Tecnologia da Informação, proprietário da IP10 Tecnologia. |
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