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ÓPRAÍ WANDA CHASE

Carlinhos Brown: o mago do Candeal Pequeno

Wanda Chase traz detalhes íntimos da vida e da carreira do artista baiano, que completou 60 anos na quarta-feira (23)

Wanda Chase • 24/11/2022 às 12:45 • Atualizada em 27/11/2022 às 13:08

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Eu ensinei meus filhos a somar, multiplicar, dividir e nunca diminuir“ - Palavra de mãe, palavra de dona Madá, de 76 anos, mãe de Carlinhos Brown. Uma mulher forte, cheia de vida e orgulhosa da sua cria. São nove filhos e Carlinhos é o mais velho.

Brown nasceu de parto normal, pesando 4 kg e 950 gramas, numa sexta-feira, dia 23 de novembro de 1962, às cinco da tarde na Maternidade Tsylla Balbino. Na época, dona Madá era uma adolescente de 16 anos e três meses. O menino era gordo e mamou até quase três anos.

Dona Madá me conta que Brown era uma criança saudável e muito “pintão". Gostava de brincar na rua. A família morava em uma casa simples no Candeal, não tinha água encanada e Carlinhos carregava água da bica do seu Júlio. Inteligente, logo o menino percebeu a situação e começou a ajudar em casa, vendendo água, picolé, cocada baianinha e amendoim torrado.

Ia pra porta dos supermercados carregar compras dos outros. Fazia tudo que desse dinheiro. Era um menino bom e respeitava os mais velhos. Apanhou muito - conta a mãe - porque era teimoso e ela “sapecava” ele. Para sustentar os filhos, dona Madá trabalhava muito.

Seu Bororó era pintor de parede. A renda dos dois não dava para dar uma vida melhor às crianças. Ela  lavou roupa de ganho, trabalhou como serviços gerais no Centro Administrativo da Bahia. Dona Madá  faz uma pausa e fala do sentimento do filho ao ver a mãe naquela situação. Ele sempre dizia para ela, que quando ficasse grande ia ganhar muito dinheiro, comprar uma casa e dar uma vida melhor. “Mãe, um dia eu vou dar pra senhora uma casa, vou ganhar numa noite muito mais do que a senhora ganha trabalhando em um mês" .

Carlinhos já demonstrava sinais de amor pela arte, vivia batendo nas latas, como se estivesse tocando. Sinalizava que seria artista. Assistia Jair Rodrigues bem novinho no Programa do apresentador Flavio Cavalcante.“Mas eu não queria que ele fosse artista, eu tinha medo. E ele louco quando via os programas na tv. Cansei e coloquei nas mãos de Deus .Um dia chamaram ele pra tocar em Arembepe e eu deixei. Deus sabia de tudo". 

Em 1988, Brown cumpriu com a promessa que tinha feito a mãe, tirou-a do trabalho e deu uma casa no Candeal. Hoje, dona Madá mora em um bom apartamento dado por ele no bairro da Pituba.

Parcerias e música

O produtor musical e arranjador Mika Mutti conta um pouco da relação de amizade e musical com CB. "Carlinhos Brown é um irmão que a vida me deu", diz ele . "Foi Brown que me levou pro mundo de uma forma muito mais abrangente do que eu imaginava. Nunca imaginei que vivêssemos momentos tão especiais" .

Mika e Carlinhos se conheceram na gravadora WR, de Wesley Rangel, em 1995. E nunca mais se separaram. Hoje, Mika mora na Califórnia, Estados Unidos. A WR, para quem não sabe, fica ali na Avenida Garibaldi e era um lugar muito bem frequentado pelos compositores que davam plantão na porta para mostrar suas canções para os cantores da axé music.

Rangel teve uma participação muito grande no estouro da nossa música. Todos ou quase todos os artistas baianos gravavam lá e Brown era um deles. Na época ainda não era famoso, mas já fazia suas experiências. Uma certa vez formou rapidinho um coral com um copo de plástico na boca pra gravar uma música. O técnico de áudio ficou injuriado, largou tudo e foi embora. Mika, saiu em defesa de Brown e conversou com Wesley Rangel sobre a indelicadeza do técnico e gravou com CB e o coral. Isso aproximou os dois .

"O som ficou massa, diferente. Quer dizer, Brown já tinha essa coisa significativa.” Dias depois, eles se encontraram casualmente na passagem de som da gravacão do DVD Eletrodoméstico, de Daniela Mercury. Carlinhos participou como convidado e disse a Mika que iria chamá-lo para uma turnê . O arranjador e produtor musical achou que era fogo de palha. E eis que um dia Brown liga e pede que ele fosse até o Candeal de camisa branca. E mais … que levasse o piano.

A chegada de Mika no Candeal gerou gozações. “Os músicos perguntavam: qual é a de mesmo Brown ? O que esse branquelo tá fazendo aqui?". Mika armou o piano e Brown começou a cantar A Ilha: “olha ela lá , lá ,lá”.

"Aí entrei na Banda com os meninos. Gato Preto, Marquinhos, Léo Bit Biti. A primeira turnê  fizemos doze países na Europa e Marrocos, mas quando chegamos no Aeroporto da Espanha soubemos da notícia que um grupo de terroristas tinha explodido o Hotel que íamos ficar hospedados. De repente aparece o DJ Dero, parceiro de Carlinhos em Maria Caipirinha."

O cara disse que era fã de Brown e os dois fizeram um disco de música eletrônica, o Candeal Beat. Mika lembra da gravação do documentário El Milagro de Candeal, dirigido pelo cineasta Fernando Trueba com músicas de Carlinhos Brown e do compositor e pianista cubano Bebo Valdés, que não está mais entre nós. Foi por meio de Brown que Mika conheceu Sérgio Mendes, um dos músicos mais importantes do Brasil.

"Um dia Brown me ligou e disse: Mika Y (é assim que ele me chama desde o primeiro dia que fomos apresentados) vem aqui no Candeal que Sérgio Mendes precisa de alguém para fazer algumas partituras das músicas dele. Fui correndo, Rsrsrs." Pra Mika, Carlinhos é um gênio da música.

Composições

Quando compôs a música 'Meia Lua Inteira', Brown era músico de Caetano Veloso. O filho de dona Canô ouviu atentamente e disse: "adorei, adorei" . Uma curiosidade: 'Meia Lua Inteira' foi o apelido que dona Madá deu a uma mesa que ganhou de presente do músico Tony Mola. Se colocassem muitos objetos na mesa, como travessas com comida, o móvel não aguentava. E quando isso acontecia era aquele corre-corre. Uma mesa que ganhou apelido e virou música, sucesso estourado na voz de Caetano e também de Bell Marques, quando era vocalista da banda Chiclete com Banana.

Observe bem a letra: “Meia lua inteira sopapo na cara do fraco. Estrangeiro, gozador. Cocar de coqueiro baixo quando engano se enganou" … Em outro trecho ele brinca com as palavras homenageando Mestre Bimba, criador da Capoeira de Angola. A canção diz : “Bimba berimba a mim que diga, taco de arame , cabaça, barriga. São dim, dom, dom São Bento. Nunca foi um marginal. Sumiu na praça a tempo,  caminhando contra o vento sobre a prata capital. Poeira ra ra ra ra , derradeiro ra ra ra ra ... Não me impede de cantar ra ra ra ra” .

Na minha opinião, essa música é um manifesto a favor da capoeira. Um protesto contra a discriminação de capoeiristas, que ainda pesa no Brasil. O Mestre em Capoeira Angola, Gato Preto até hoje nunca esquece de um momento mágico e ao mesmo tempo forte do primeiro carnaval na Espanha feito pelo Cacique.

Estreia do Camarote Andante em terras espanholas. Os percussionistas no chão e de repente no estandarte que estava escrito o repertório, uma página tinha um aviso: ”O chão é ôco.“

O trio elétrico fazia duas vezes o percurso correspondente ao circuito Barra-Ondina, em Salvador. O couro comendo, o chão tremendo e o metrô passando em baixo. E Zidane (aquele pedaço de mal caminho) virava o estandarte onde Alê tinha escrito a frase curta e bombástica: e bote pra rebolar com Timbalada Soul e o bordão da música  Dá-lhe Seu Vavá. As autoridades de segurança esperavam um público de sessenta mil pessoas. Vieram mais de oitocentas mil, uma situação incontrolável, povo enlouquecido, coisa de outro mundo. E Dá -lhe Carlinhos Brown com o repertório dançante.

Gato Preto conta que até o trio dançava e o povo a gritar “ Tê, tê ,tê … Samba na Bahia, Samba na Bahia". "Maria Caipirinha estourada - continua Gato - de uma hora para outra.

Carlito Marrón recebeu o título de Rei da Espanha. Foi uma loucura. Ele virou febre em terras espanholas, fazendo turnês nos quatro cantos do país. Carlito Marron estava em todos os canais de tv do país fazendo comerciais, de tudo que era tipo: de escova elétrica a creme dental. Ele fez o segundo comercial mais caro da Espanha. Nessa época, Mika Muti era o braço direito do cantor, compositor, arranjador. CB virou até personagem de humor em programa de tv.                                 

Essência

Carlinhos é bem humorado, gentil, divertido …. adora imitar as pessoas - eu sou “vítima” dele rsssss - mas … dizem alguns, se ele estiver usando a touca verde …nem chegue perto. O comentário corre rápido. “Hoje Brown tá virado no estopô",  mas para Kalunga que gosta de ser identificado como “parceiro da tecnologia“, o vilão é o Cocar.

Kalunga ou Carlos Branco já ajudou Brown a construir quatro estúdios e está prestes a entregar uma emissora de tv no Guetto Square. Kalunga é desconfiado e fã número 1, digamos assim, de Brown. Para ele, a primeira qualidade de Brown é o pioneirismo.

Se o patrocinador der R$ 50.000,00 e o projeto for R$ 70.000, Brown mete a mão e coloca os vinte mil do próprio bolso. Cauteloso com as palavras, Kalunga me conta que quando é chamado para ir ao Candeal conversar com CB já sabe que vem uma ideia daquelas. E quando ele me chama Kalunguete e Kalunguinha vou ter trabalho para convencê-lo que não vai dar certo. Se ele estiver sem o cocar na cabeça dá tudo certo, mas se for o contrário sou voto vencido.

"Se ele ordenar, eu faço. O problema é o cocar do cacique", diz ele sorrindo. A relação de amizade entre os dois é muito forte, fundamentada pela lealdade, honestidade e respeito. Eu escreveria dezenas de páginas pra falar sobre o gênio Carlinhos Brown, filho musical de Pintado do Bongô.

Carlinhos costuma dizer que ninguém resgata cultura, quem resgata, diz ele, é bombeiro. Mas, todavia….esse cronista social do nosso cotidiano faz buscar lá no fundo do baú nossa cultura. Ele sabe o quanto somos ricos culturalmente.

Gravações

Pra encerrar quero pontuar dois momentos, duas canções que me deixaram emocionada ao saber das histórias dessas músicas: 'Velha Infância' gravada por ele e os Tribalhistas e 'Vamju Concessa'.

Nessa última, ele conta um pouco da história de um Candeal Pequeno do passado, que ele viveu na infância. Um povo que vivia e falava expressões muito próprias:  “Tocapiau. Beja veja se ela ir. Com Manuca xular. Vê Xangô em Dona Preta. Que veio de Irará. Pra dona Nair. Dadá dona Didi. Dionísio e Coca Cola. Na carroça vai subir. Pela Rua do Carmelo com Zeca Tupi. Canjica Concessa. Dona Brigida , Dona Bela, Edna, Damiana (avó materna dele )….. E por aí …."

Na canção, o artista fala de como os moradores do Candeal de Baixo enfeitavam suas casas para as festas com palha e dendê e cobriam o chão com areia branca e folhas de pitangueira …Um luxo! Tão linda quanto essa história, ele escreveu Velha Infância. “Você é assim. Um sonho pra mim. E quando eu não te vejo. Você é assim, te vejo...Eu gosto de você. E gosto de ficar com você..."          

E mais adiante, ele escreveu esses versos: “Por ser criança, a gente brinca. Na nossa velha infância .Seus olhos meu clarão me guiam dentro da escuridão. Seus pés me abriram o caminho". 

Essa canção faz uma homenagem a sua tia Alice é deficiente visual. A afinidade entre eles é grande desde a infância. Era Carlinhos que a acompanhava até o Instituto dos Cegos, em Salvador. Gesto de amor e carinho.

Parabéns Carlinhos ! Agradecida pelo “tantão” de canções!!!

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