Direitos previstos na Constituição Brasileira, o acesso à cultura e ao lazer deveriam ser inerentes a experiência do cidadão na sociedade. Apesar disso, uma série de fatores históricos - como a desigualdade social e o racismo - resultaram em um cenário destoante, que afeta diretamente a vida de diversas pessoas.
Foi pensando nessa realidade que o produtor de conteúdo, comunicador e ativista, Rick Trindade decidiu criar o projeto social "Perifa na Lista", que possibilita o acesso de pessoas negras e de periferia em eventos culturais. Até o momento, o projeto, que é realizado em parceria do também ativista e produtor de conteúdo Daniel Jesus, já levou 100 jovens para diversos espaços como o Afropunk, o show de João Pimenta e até mesmo o evento de pré-estreia do filme "Renaissance: A Film by Beyoncé", que contou com a presença da diva pop.
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Em 2024, a iniciativa levará mais de 30 jovens para o Festival de Verão, que acontece em Salvador, nos dias 27 e 28 de janeiro.
Naturais das cidades de Itabuna e Ilhéus, ambas localizadas no sul da Bahia, os dois entendiam, por experiência própria, as dificuldades que as pessoas pretas e do interior do estado tinham - e ainda têm - para acessar iniciativas culturais. Raros e quase sempre caros, os shows, as peças de teatro, os festivais e outros eventos são uma realidade distante.
"Nós somos dois homens negros do sul da Bahia e ter acesso a arte, lazer e cultura aqui é muito difícil e as veze quando chega a gente não tem condições de ir porque é muito caro. [Somam-se] o valor do ingresso, da passagem, da hospedagem e a gente sabe a realidade da população preta nesse país. Tem acessos que são muito caros para a gente e, por necessidade, nós priorizamos outras coisas", comenta Rick Trindade.
O 'Perifa na Lista' nasceu dessa percepção e de uma iniciativa um pouco "cara de pau". Conhecido em Itabuna por outras ações sociais, como a arrecadação de ajuda para os afetados pela enchente que atingiu o sul da Bahia em 2021, Rick resolveu fazer um pedido para o humorista João Seu Pimenta, que ia fazer um show na região.
"O João vinha fazer um show aqui [em Itabuna] e em conversa com [um amigo] ele comentou da quantidade de jovens que queriam ir, mas não tinham condições. Como João havia me seguido nas redes sociais eu pensei: 'Bom, o que eu posso [fazer] é ter a cara de pau de perguntar se eu conseguiria levar [álguém]", conta Rick. "Geralmente, eu não consigo pedir nada quando é para mim, mas quando envolvem os outros eu consigo", brinca ele.
A partir desse momento, uma rede de pessoas foi acionada por meio das redes sociais até chegar ao artista. Além do nascimento do projeto, o movimento possibilitou que 30 jovens, metade de Ilhéus e a outra metade de Itabuna, conseguisse assistir ao show do artista, que aconteceu em 2023.
Para ampliar esse trabalho, a participação de Daniel foi essencial. Idealizador do projeto Wakanda, realizado na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), em Ilhéus, o estudante de filosofia ajudou Rick a fazer uma ponte entre o Perifa e os jovens.
"Eu conheci Rick através das redes sociais, em 2019, e a partir desse momento a gente não se separou mais. Até que em 2023, nós começamos esse movimento e pensar qual seria o perfil dos jovens atentidos pelo projeto. Inicialmente, pensamos que deveriam ser pessoas parecidas com a gente: jovens negros, de periferia e que tivessem algum envolvimento em movimentos sociais", diz Daniel.
Autoestima e acesso
Para além dos momentos de diversão, o Perifa na Lista proporciona outro aspecto importante para os participantes: a autoestima. Entre o racismo e a falta de poder aquisitivo, o jovem negro pode facilmente se sentir pouco merecedor dessas oportunidades.
"A gente sabe como a autoestima do jovem negro, muitas vezes, está lá embaixo. Até mesmo para concorrer [a essas iniciativas]. Tem gente aqui no interior que nem se inscreve porque acha que não merece, que não vai conseguir ou que não vai ter como. Por isso, a gente busca construir também uma rede de apoio, se conectar com outros jovens negros da região", pontua Daniel.
Para a maioria dos assistidos, foi a primeira vez que eles tiveram a oportunidade de se ver saindo do interior e visitando à capital baiana. Geralmente, os participantes passam o tempo todo juntos, dividem o local de hospedagem e aproveitam os passeios, o que leva a criação desses laços de afeto. Esse acesso, tanto a lugares antes entendidos como "inalcançáveis", quanto ao sentimento de isolamento, inicia um processo de transformação nesses jovens.
"É um projeto que visa tocar em cada aspecto da sociedade. Queremos oferecer lazer e cultura, mas também queremos oferecer outras ações que façam diferença na sociedade em que vivemos", enfatiza Daniel.
Essa mudança se reflete nos relatos dos participantes do projeto. Segundo os idealizadores, muitos jovens passam a considerá-los família e pontuam que a ideia de sonhar com lugares mais distantes passa a ser possível a cada experiência.
"Eu lembro que fomos passear no Pelourinho e muitos disseram: 'ai, estou me sentindo em casa'. Também teve um muito bonito em que [um dos participantes] falou sobre voltar a sonhar. Então, tem muita gente que tem essa postura de nos agradecer pela oportunidade, mas também há esse lugar do reconhecimento", conta Rick.
Festival de Verão
Pessoas do interior da Bahia e de Salvador estão entre os selecionados para participar do Festival de Verão 2024. Há pessoas que vieram das cidades de Camacã, Ibirapitanga, Canavieiras, Feira de Santana e Cachoeira, por exemplo.
Dessa vez, o 'Perifa Na Lista' não conseguiu patrocínio para a hospedagem, por isso priorizou os candidatos que conseguissem arcar com essa despesa. Apesar de novo, o projeto já conseguiu impactar pessoas de muitas cidades e regiões da Bahia.
A força do boca a boca, do trabalho diário, de artistas como Tatá Werneck e Whindersson Nunes e, é claro, a esperança na diferença que este tipo de ação tem guiam o trabalho da dupla de comunicadores.
"O mais importante é trabalhar em comunidade, é pensar como povo, é o que mais me movimenta. Acho que falta esse pensamento coletivo, óbvio que queremos sair do aperto, mas que é tão importante quanto pensar coletivamente", enfatiza Rick.
"Saber que unindo nossas habilidades a gente consegue causar esse tipo de impacto, essa viabilidade que, as vezes, nem mesmo a política consegue prover, [é muito importante]. Faz isso com outras pessoas negras, buscando se conscientizar, é algo que nos fortalece muito e também o movimento negro", finaliza Daniel.
