Para a Agência de Inteligência Americana (CIA), Carlos Marighella (1911-1969) era o “sucessor de Che Guevara”. Para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), ele era o “Inimigo Público Nº 1” da Ditadura.
Articulador de greves, organizador de assaltos e idealizador de revoluções, Marighella era visto como “terrorista” pelos dois órgãos, onde pesava o perfil de guerrilheiro urbano do fundador da Ação Libertadora Nacional (ALN) – a mais estruturada das entidades que combateram o regime militar através das armas.
Imóvel em ruínas na Rua Barão de Desterro foi onde começou a formação de militante de Carlos Marighella, que depois se tornou o inimigo número um da Ditadura Militar brasileira |
Já o filho Carlos Augusto Marighella, o Carlinhos, prefere valorizar outros traços do pai. “Ele adorava aquele bambuzal do aeroporto. Às vezes, quando tinha que pegar um avião, chegava lá mais cedo, descia no bambuzal e ia andando”, lembra.
Entre 2011 e 2012, a história do político aflorou por variadas artes. Além de Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, biografia escrita por Mário Magalhães, foi lançado também o documentário Marighella, de Isa Grinspum Ferraz. O filme conta com uma música do grupo de rap Racionais MC`s. No Youtube, o clipe de Mil faces de um homem leal tem quase 3 milhões de visualizações.
Caetano Veloso, por sua vez, compôs Um Comunista, presente no álbum Abraçaço. “Um mulato baiano / Muito alto e mulato / Filho de um italiano / E de uma preta hauçá / Foi aprendendo a ler / Olhando mundo à volta / E prestando atenção / No que não estava a vista / Assim nasce um comunista”, canta Caetano.
Pois este comunista se fez na Rua Barão de Desterro. “Marighella saiu da Baixa dos Sapateiros para o mundo”, define Mário Magalhães. Foi ali que Carrinho - apelido de infância do futuro guerrilheiro - se alfabetizou.
Depois, era dali que saía para jogar capoeira no Pelourinho, sempre de olho em Mestre Pastinha. Foi vivendo ali que ele teve suas primeiras leituras, escreveu seus primeiros versos e se apaixonou pelo Esporte Clube Vitória.
Poesia
Era da Barão de Desterro que Marighella saía para as aulas no Carneiro Ribeiro, na Soledade, e depois para o Ginásio da Bahia, atual Colégio Central, na Avenida Joana Angélica. E foi estudando no Ginásio da Bahia que o garoto ganhou fama em Salvador, ao responder em versos uma prova de Física sobre o estudo do reflexo da luz nos espelhos. O ano era 1929 e ele tinha 17 anos. A prova ficou exposta no colégio até o golpe de 1964.
Amante dos babas de rua, Marighella certa vez pediu ao pai dois pares de calçados: uma botina para a escola e uma chuteira para o futebol. Dinheiro para os dois, não havia. Após pensar um bocado, o garoto escolheu a botina. Na hora da bola, ia até a oficina do pai e pregava cravos temporários no solado.
“Foi nesta casa que Marighella se forjou. Ele passou a infância, a adolescência e o primeiro momento da vida adulta. Depois, voltou em 1945. A casa dos pais virou uma espécie de bunker da campanha em que ele foi eleito deputado”, diz o arquiteto Marcelo Ferraz.
No período da campanha, conta Mário Magalhães, dona Maria Rita ia olhar Marighella dormindo todas as noites. E, todas as noites, chorava ao ver as marcas da tortura no corpo do filho. Em 1945, ele já tinha sido preso muitas vezes.
A primeira foi em 1932, quando ainda vivia na Barão de Desterro. Estudante de Engenharia Civil na Escola Politécnica da Bahia, participou da ocupação do prédio da Faculdade de Medicina, no Terreiro de Jesus.
Os estudantes bradavam por uma Assembleia Constituinte democrática no país. Durante a ocupação, encararam as tropas do governador Juracy Magalhães (interventor nomeado por Getúlio Vargas) com restos de armas da Guerra de Canudos - não dava pra resistir.
Levado preso do Pelourinho, Marighella aproveitou os dois dias na carceragem para parodiar Castro Alves e golpear o governador. Inspirado por Vozes D’África, versou as Vozes da Mocidade Acadêmica, assim concluindo: “Basta, senhor tenente / de teu bucho jorre através das tripas / Um refluxo de Judas e sandeus / Há duas noites eu soluço um grito / Escuta-o, conclamando do infinito / ‘À morte os crimes teus!’”.
Partida
Perseguido por Juracy, Marighella nunca terminaria a graduação na Politécnica, onde também chegou a responder uma prova em versos e se fez militante, antes de se fazer comunista. Em 1934, filiou-se ao PCB. Na Barão de Desterro, o pai fez um buraco no quintal para esconder os livros do filho.
No dia 5 de dezembro de 1935, Marighella completou 24 anos. Antes, em outubro, embarcou num navio para o Rio de Janeiro, tentando sair da mira policial. Então, a Baixa dos Sapateiros já tinha cumprido seu papel na trajetória do guerrilheiro.
Matéria original: Correio 24 Horas
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