O pai de santo de origem africana, João de Obá, que fundou o Bembé do Mercado em 13 de maio de 1889, o maior ritual ao ar livre do Candomblé no Brasil realizado há 134 anos em Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, ganhou uma escultura na cidade.
Instalada no Largo do Mercado, na região central, a obra passa a fazer parte do circuito turístico do município baiano, com visitação gratuita. O monumento faz coro à resistência da população negra contra o racismo e o combate à intolerância religiosa no país, assim como defende a preservação da cultura e das tradições de matriz africana no Brasil.
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A escultura de João de Obá foi produzida pela artista plástica soteropolitana Annia Rízia, mede 56 cm de altura e 40 cm de comprimento e foi confeccionada com resina revestida com pó de mármore e grafite, matérias-primas compatíveis com a manutenção da obra em espaço aberto.
O projeto é idealizado pelo Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), de Salvador, e realizado em parceria com a Associação Beneficente Bembé do Mercado, o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) vinculado ao Governo da Bahia e a Prefeitura de Santo Amaro.
“As imagens e as estátuas para a tradição africana, de maneira geral, são fundamentos materiais que ajudam os povos pretos a se conectarem com o universo simbólico da fé. É também uma forma dos negros conhecerem, revisitarem e fortalecerem o legado dos seus antepassados na luta pela conquista dos direitos da população preta no Brasil. Nesse sentido, o busto de João de Obá homenageia a dedicação desse sacerdote na quebra de barreiras e na manutenção do Candomblé no país, não nos deixa esquecer a sua trajetória e nos deixa a honrosa missão de dar continuidade ao trabalho desenvolvido por ele”, explica Cintia Maria, presidente do Muncab.
Não há muitos registros sobre a trajetória do João de Obá. O que se sabe por meio da literatura acadêmica é que ele foi um negro escravizado, de origem Malé, termo usado para designar os africanos de origem muçulmana, feiticeiro, candombleseiro (como se chamava antigamente), dominava a arte do Ifá (jogo de búzios) e era filho do Orixá Xangô (Obá). Possivelmente, havia trabalhado nos engenhos de açúcar do Estado da Bahia e deveria ser um homem respeitado pelos seus conterrâneos.
“O Bembé do Mercado foi criado para pedir a tolerância da população e das autoridades com as tradições e a cultura africana no município de Santo Amaro no século XIV. Uma atitude bastante simbólica e atual, como se estivéssemos estendendo a bandeira branca pela paz. O busto, além de justo, é a forma de nunca esquecermos a memória do João de Obá e de reafirmar a sua luta atualmente”, defende José Raimundo Chaves, o “Pai Pote”, presidente Associação Beneficente Bembé do Mercado, que administra a festividade.
Legado
O Bembé se caracteriza como uma obrigação religiosa destinada às divindades das Águas para agradecer e propiciar o bem-estar da coletividade. São três momentos cerimoniais: os ritos ligados ao fundamento da festa (as cerimônias para os ancestrais, o Padê de Exu, o Orô de Iemanjá e Oxum); o Xirê do Mercado e a entrega dos Presentes destinados a Iemanjá; e a Oxum, que reúnem mais de 40 terreiros de matrizes afro-brasileiras de várias nações nas ruas de Santo Amaro da Purificação.
Contudo, sua produção e execução envolvem diversos atores sociais como os comerciantes locais, pescadores, ativistas políticos, brincantes de Maculelê e detentores de bens já registrados como Patrimônio Cultural do Brasil, sambadoras e sambadores de roda do Recôncavo e capoeiristas.
Mais do que uma festa secular, o Bembé do Mercado evoca a luta antirracista e tem, também, outros bens culturais associados, como a do Nego Fugido, um teatro que representa a violência da escravidão; o Lindro Amor, cortejo feminino feito para comemoração dos festejos de São Cosme e São Damião; a Burrinha; e a Puxada de Rede, todos relacionados às referências culturais da diáspora africana.
Na programação da festa ainda são incluídas atividades realizadas por grupos de dança afro, grupos folclóricos e outros da cultura popular, como a capoeira e o samba de roda.
O Bembé foi reconhecido como patrimônio imaterial pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia, em 2012, e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2019. Existem diversas teorias sobre o uso do nome Bembé, quase todas assentadas nos processos da diáspora africana.
Entretanto, pesquisa realizada pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e Iphan com os praticantes mais antigos indica que o nome deriva de Candomblé. O Bembé é como um balaio de história, cultura, arte e ação política que acolhe o melhor das expressões do Recôncavo Baiano.
A capacidade inventiva e transformadora desta festa permitiu que ela sobrevivesse neste espaço por mais de um século, sendo um marco contra o passado escravagista. Por isso, sua relevância para a memória, a história e a cultura nacional.
Origens
A cidade de Santo Amaro se constituiu como núcleo açucareiro e fonte de alimentos de subsistência, tendo a escravidão como base dessa economia. O comércio realizado no Mercado local, incluindo a venda de peixes, era para os escravizados uma alternativa de obter recursos para a compra da alforria e posterior forma de sustento, sendo o espaço do Mercado também protagonista da história.
Mesmo após a Lei Áurea, a população negra, que continuou vivendo as desigualdades econômicas e sociais, enfrentando dificuldades para a livre prática de seus cultos religiosos nos espaços internos e externos aos terreiros.
Para fazer o Candomblé, era necessário obter o aval de autoridades políticas, além de ocorrer em datas relacionadas às festividades católicas. Contudo, no dia 13 de maio de 1889, sem qualquer permissão e aos modos de uma celebração religiosa de matriz africana, os filhos e filhas de santos guiados por João de Obá, se uniram na Ponte do Xaréu para celebrar uma data cívica, no centro da vida pública da cidade.E assim teve início essa manifestação cultural e religiosa pública secular.
A Rua, o Mar e o Mercado transformam-se em territorialidades expandidas do Candomblé, e durante o Bembé, também lhes conferem uma dimensão política, além de religiosa. A presença dos capoeiristas e do povo do maculelê era essencial na festa, uma vez que atuavam como uma forma de agentes de segurança diante do Estado ameaçador e repressor.
Redação iBahia
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