A terra arde tal uma fogueira e o coração miúdo da asa branca aperta. Fica igualzinho ao do sertanejo. Ninguém quer deixar sua vida, seu lugar, sua gente para trás. Mas, quando a estiagem tira do peito o resto da fé, a única alternativa, tanto para o homem, quanto para o pássaro, é bater asas da caatinga em busca de uma vida melhor. Uma revoada de gente cheia de saudade foge para a terra prometida.
Encarnando o que profetiza a música mais famosa de Luiz Gonzaga, 40 pais de família da comunidade de Gitaí, em Retirolândia, a 193 quilômetros de Salvador, se preparam para uma cruzada de sofrimento. Os retirantes vão para Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais ou onde tiver uma plantação de pé. No dia 4 de maio, em vez dos antigos paus-de-arara, um ônibus vai levar os que partem sem querer. O motivo? Em plena região sisaleira, perdeu-se quase tudo. Não existe trabalho algum. Na única rua do povoado, os homens acordam cedo, mas ficam em casa. No máximo, aglomeram-se em pequenos grupos, sentados no calor. “Sem água, não tem solo. Sem solo, não tem sisal. Sem sisal, não tem renda. Sem renda, não tem o que comer. Aí tem que buscar o sustento fora”, diz Roberto Batista dos Santos, 28 anos, escalado para passar seis meses em Canápolis (MG), trabalhando no corte de cana-de-açúcar.
Roberto está de malas prontas. Sua única filha vai ficar com a mãe em Gitaí. O combinado é que parte do dinheiro deve ser depositado na conta da mulher. Pode tentar também um dinheirinho para os pais. A troca da faca e da enxada pelo podão, usado na colheita da cana, compensa financeiramente, mas não fisicamente. “A cana é muito mais difícil que o sisal. Desgasta muito. Tem gente que não guenta e desmaia”, diz. Por experiência própria, Noé Alves dos Santos, 42 anos, só resolve se incluir nessa saga porque não tem jeito. Segue para o interior do Mato Grosso do Sul. "Corte de cana é para quem tem coragem. Já caí para trás umas duas vezes. Dá muito problema de coluna e cãibra. Já vi gente morrendo”. Mas, Noé não vai sozinho. Três dos quatro filhos, já crescidos, vão lhe acompanhar. “Pelo menos ameniza a saudade”. Emoção Saudade. Essa é a prova de que o sertanejo pode ser, sim, um forte. Mas, jamais endurece por dentro. Uns cabras não resistem à emoção. Na hora da triste partida, a água salobra que falta nas cisternas começa a cair dos olhos. “O coração dói. Não é moleza ficar longe da família. Essa vida é louca”, afirma Márcio de Jesus, 38 anos. Daqui em diante, por oito meses, vai trabalhar na colheita de café em Minas GeraisMas, fugir da seca não é só deixar a família para trás. É também enfrentar perigos nas estradas, assaltos e roubos. “A gente fica para um lado e para o outro com nossas coisas e os ladrões se aproveitam”, explica Márcio. Como em Gitaí, muitas outras comunidades terão suas populações reduzidas nos próximos meses, pois a inclemente estiagem já é considerada a pior dos últimos 30 anos. Na Bahia, mais de 200 municípios estão em situação de emergência. Quem não foi embora ainda, pensa nisso a cada minuto. Morador do povoado de Lagoa Grande, também em Retirolândia, Antônio Tór, 73 anos, reflete com tristeza sobre a vida, debaixo do que resta da copa de uma amendoeira. “Tenho quatro vacas. Se elas morrerem, é difícil ficar”. A cruzada remonta as enormes levas de retirantes das décadas de 1960, 70 e 80. Nos anos 90, o problema diminuiu, mas continuou. Somente entre os anos de 1995 e 2000, o saldo migratório negativo da Bahia foi de 267 mil pessoas, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios(Pnad), do IBGE. Em 2006, uma curiosa inversão no fluxo migratório mostra que o estado passou a apresentar saldo positivo de migrantes (33 mil pessoas), em oposição à tendência histórica de saída da população. Agora, com a seca, o quadro pode mudar. Parece uma fuga sem fim. Como o próprio Gonzagão narra na comovente canção Triste Partida, a saída do sertanejo a cada seca e o retorno a cada chuva é quase um círculo vicioso. Mas, dessa vez, a estiagem pegou o povo de jeito. Agora são 40 que partem de Gitaí. Ao final, será uma revoada de gente e saudade. Ananias, 82 anos: ‘Tô acostumado’Já eram 11h e, desde a manhã do dia anterior, Ananias Gonçalves de Almeida não tinha tomado uma gota d´água. “A água que eu tomei ontem foi do café preto”, revela seu Ananias, que, segundo ele, só não mora sozinho porque mora com Deus.
Aos 82 anos, enfrentou muitas secas nessa vida. Descansou muito debaixo dos umbuzeiros depois de procurar água. Perdeu muitas plantações de sisal. “Tô acostumado com seca”, diz. Mas, poucas foram como a atual. “Igual a essa só em 1952. Naquele tempo, tive que ir embora”. Outros sete o acompanharam. Como todos os retirantes, seu Ananias viajou contrariado. Seguiu para o Paraná. Na chegada, enfrentou três dias de chuvas. “Caiu um aguaceiro. Aí pensei: ‘saí da seca para morrer afogado na terra dos outros’”. Por conta daquela seca, diz Ananias, a coisa melhorou. “Construíram muitos açudes”. Como se vê, ainda são poucos.
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