Quando percebeu que estava grávida, Luísa* estava num relacionamento que já durava um ano e meio. Carolina*, uma dona de casa recém-separada, teve uma recaída com o ex-marido de comportamento abusivo. Já com Mariana*, foi coisa de uma noite só, mas a gravidez veio mesmo assim.
Todas decidiram abortar. “Comecei a procurar por ajuda, mas, na internet, só encontrava pessoas mal intencionadas, vendendo remédios que não chegavam. Procurei clínicas, mas elas eram tão escondidas que não encontrava”, contou Mariana, que abortou no ano passado. E aí, cada uma em seu momento, descobriram a ONG holandesa Women on Web (www.womenonweb.com).
A ONG holandesa, cujo nome significa “mulheres na rede”, em inglês, ensina a usar abortivos (do tipo Cytotec) e envia os medicamentos para qualquer mulher que faça uma solicitação, desde que ela more em algum país onde o aborto é proibido. E o Brasil está entre eles: nada menos que 1,2 mil brasileiras por mês fazem pedidos ao site, o que representa 15% dos 8 mil pedidos que a rede recebe de todo o mundo.
“O aborto é um direito das mulheres e salva vidas todos os dias”, afirmou uma representante da ONG, ao CORREIO.
No Brasil, o aborto só não é crime em três situações: quando oferece risco à vida da mulher, em caso de estupro ou quando o feto tem anencefalia. Por conta da situação no país, a representante da Wow pediu que sua identidade e localização fossem preservadas.
Como funciona A organização é um braço da Women On Waves (do inglês, “mulheres sobre ondas”), que levava mulheres para águas internacionais em barcos para interromper gestações. “De imediato, eles disseram para eu me manter calma, porque iam me ajudar”, afirmou Mariana, uma das que recebeu os medicamentos. Não há custo para as mulheres que pedem os medicamentos, se elas não puderem pagar. No entanto, a Wow pede doações, que vão de 70 a 90 euros, a depender das condições sociais do país (no caso do Brasil, é de 70 euros, cerca de R$ 230). Em comparação, comprar Cytotec no mercado ilegal pode chegar a R$ 1 mil.
“A Women On Web é muito utilizada não só no Brasil, mas também na América Latina, que é uma das regiões do mundo que lidera a realização de abortos inseguros, em função das leis altamente restritivas”, explica a médica Greice Menezes, doutora em Saúde Pública e pesquisadora do Programa de Estudos em Gênero e Saúde (Musa), do Instituto de Saúde Coletiva da Ufba.
Condições Além de viver em um país que proíba o aborto, a candidata não pode ter doença grave e a gestação deve ter, no máximo, nove semanas. Aí é preciso responder a 25 perguntas — numa espécie de consulta online — que incluem desde como a mulher se sente com relação ao processo, até questões sobre doenças cardíacas.
As respostas são encaminhadas a um médico. Se não houver nenhum problema, o médico autoriza e a equipe farmacêutica, com sede na Índia, envia a medicação. Eles atendem em 11 línguas, incluindo português. “Indicamos os protocolos da Organização Mundial de Saúde (OMS). Existem meios de fazer aborto de maneira segura, embora o Brasil continue tentando fazer com que as mulheres adotem métodos perigosos”, pontuou a representante da Wow. Postagem O Brasil é o país onde os pacotes mais demoram a chegar: levam de cinco a sete semanas. “É uma exceção, devido ao tempo do sistema interno de postagem brasileiro. Em outros países, os remédios chegam em duas semanas. No resto da América Latina, em três ou quatro”, revelou a representante.
O pacote tem sete comprimidos: seis da substância Misoprostol e um de Mifrepristona (ambas substâncias proibidas no país). Eles não vêm com orientações sobre como usar. Por questões de segurança, eles listam tudo que as mulheres devem fazer quando ela preenche o formulário e dizem para que ela imprima.
No caso de Luísa, lá do início do texto, os remédios demoraram. “A espera foi longa, parecia não ter fim. E eu lutava contra o tempo, porque já estava com mais de dois meses. Chegou, mas não foi fácil. Continua não sendo fácil”, relata.
Mas nem todas as brasileiras conseguem receber os remédios. Segundo a Wow, cerca de metade dos medicamentos solicitados aqui não chegam. Há dois anos, o governo brasileiro começou a confiscar os pacotes nos Correios e eles ficam retidos na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Nessa época, algumas mulheres foram chamadas a depor à polícia. “Não tivemos mais problemas do tipo desde então. Mas, caso aconteça, temos uma equipe para oferecer assistência jurídica a essas mulheres”, garantiu a fonte.
A lei As mulheres que tomam abortivos da organização cometem crime pelo aborto, segundo o advogado Brenno Cavalcanti, especialista em Direito Penal e professor da Unijorge. “Mas se elas só recebem o remédio, não é crime, pelo menos no que diz respeito ao aborto”. Já o responsável legal pela ONG, nesse caso, poderia responder por participação. A pena é de 1 a 3 anos de detenção.
No entanto, existe outro problema: a importação de medicamentos proibidos no país. A pena pode ser de 10 a 15 anos, segundo o advogado Fábio Possídio, especialista em Direito Comercial. “O medicamento entra no país sem regulamentação específica. Por isso, pode causar alto dano e, assim, tem penalidade alta”.
Nesse cenário, a advogada Camila Vasconcelos, especialista em Direito Médico e professora da Faculdade de Medicina da Ufba defende a importância do debate. “Existe uma necessidade de descriminalização e legalização, para que o estado crie leis que amparem pessoas nessa situação”. CuidadoPara a coordenadora da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos na Bahia, Maria José Araújo, a proposta da Wow é bem estruturada. “Elas transgridem a hipocrisia dos países onde o aborto continua sendo crime e têm contribuído em vários países para ajudar no debate. Elas fazem um trabalho muito seguro, tem muitas médicas envolvidas”, argumentou Maria José, que também é médica e especialista em saúde da mulher. Ainda assim, o presidente da Associação de Ginecologia e Obstetrícia da Bahia (Sogiba), Carlos Augusto Lino, alerta que é preciso ter bastante cuidado, já que não há nenhum médico acompanhando a paciente de perto. “Essa ONG pode estar fazendo um papel interessante, ajudando quem iria fazer de qualquer forma a fazer de uma forma segura. Mas, como não tem um critério médico, a pessoa pode estar com uma gravidez avançada e quem avalia isso é o médico, mas não podemos determinar quem é que faz aborto e quem não pode fazer”, reforça. Investigações Organizações contrárias ao aborto pedem que o governo investigue a Wow. “Uma vida está em jogo. Se o aborto é uma questão de saúde pública, também é questão de saúde pública o sequestro, o roubo, o assassinato. E nem por isso vão legalizar esses crimes. Muitas mulheres morrem por conta disso, mas toda criança morre pelo aborto”, argumenta o presidente da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, Humberto Vieira. Já a coordenadora do Movimento em Defesa da Vida, Helena Martins Costa, diz que as ações da ONG holandesa são “muito sérias”. “Esse tipo de medicamento é um retrocesso, porque o progresso é a valorização e a preservação da vida humana”. Para Helena, a ONG deveria investir em medicamentos que ajudassem as mulheres a regularizar seu período fértil. “Seriam opções para elas conhecerem seu corpo e para os homens também, já que mulher não engravida sozinha. Vejo um exemplo muito claro com essa questão das tartarugas. As pessoas levam para a praia, cuidam dos animais, mas eliminam a vida humana. Não faz sentido”.
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