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O quilombo, a professora e o intelectual

Comunidade quilombola do interior da Bahia cria clube de leitura para protagonizar a literatura preta

Ricardo Ishmael • 08/09/2023 às 8:00 • Atualizada em 08/09/2023 às 10:09 - há XX semanas

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					O quilombo, a professora e o intelectual
Foto: Jessika de Oliveira | coord Clube de Leitura Preta

Partimos numa parati branca. Nosso destino, naquela fria tarde de inverno, era uma pequena localidade do Sudoeste baiano. Até chegar ao povoado, a alguns quilômetros de distância de Vitória da Conquista, motorista, cinegrafista e eu atravessamos córregos, pontes de madeira, estradas enlameadas. Cruzamos buracos e fomos acompanhados por cachorros que, estranhando a nossa presença, corriam atrás do carro. Depois de termos nos perdido algumas vezes, e de pararmos para pedir informações a vaqueiros e a lavradoras, eis que chegamos a uma exuberante região de vale. Ali ficava o quilombo que procurávamos.

A pauta que levava a equipe da televisão à comunidade quilombola trazia uma denúncia: as precárias condições em que vivam as famílias do lugar. Não havia água encanada, luz elétrica, posto de saúde. Não havia emprego. Os homens foram para São Paulo em busca de oportunidade de trabalho. Ficaram mulheres e crianças. Elas plantavam, colhiam, iam à feira livre vender o excedente e, deste modo, punham em prática as lições de solidariedade herdadas dos povos bantu: naquela comunidade, tudo pertencia a todas, tudo deveria ser dividido, compartilhado. Era o exercício do conceito ubuntu, ou seja, “eu sou porque você é”.

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Fomos dos currais à casa de farinha, das plantações de milho às aguadas. Conversamos com as mais velhas e as mais novas, tomamos notas, entrevistas foram feitas. Visitamos, ainda, o prédio escolar, um pequeno imóvel de taipa no centro do terreiro. Judite, a professora, formara-se em Letras Vernáculas. Tão logo recebeu o diploma, decidiu estabelecer moradia nas terras desbravadas pelos seus antepassados. Chamou-me a atenção um quadro na parede com a foto de um brasileiro incomum, o professor, geógrafo e intelectual negro Milton Santos. Estava ali como farol a iluminar a classe. Antes da despedida, Judite confidenciou-me: “Meu sonho é ter uma biblioteca só com autores negros”.

Vinte anos se passaram desde aquela visita. Confesso desconhecer o destino das famílias, tampouco saberia dizer se a professora Judite conseguiu realizar o sonho dela. Fato curioso é que, duas décadas depois, vejo-me novamente diante de uma comunidade quilombola, uma professora cheia de sonhos e o mesmo intelectual negro. Agora trata-se do Barro Preto, um quilombo urbano localizado em Jequié, município também do Sudoeste baiano. Professora e escritora, Jessika de Oliveira criou e coordena o Clube da Leitura Preta no Quilombo, que há mais de ano vem movimentando estudantes dos ensinos fundamental e médio da cidade. O projeto funciona, coincidentemente, na Escola Quilombola Doutor Milton Santos!


				
					O quilombo, a professora e o intelectual
Foto: Jessika de Oliveira | coord Clube de Leitura Preta

Entre as atividades do clube está, justamente, uma biblioteca formada somente por autoras e autores negros. Livros de Silvio Almeida, Bianca Santana, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Jeferson Tenório, entre outros, estão entre os preferidos. Obras que, segundo a professora, “são ferramentas indispensáveis nas discussões acerca do racismo e do patriarcado”, por exemplo, e “fundamentais para o letramento racial dos estudantes”.

Algumas vezes por semana, sempre no finalzinho da tarde, professora e alunos reúnem-se para ler, debater, trocar. Refletem, questionam, querem respostas (e soluções!) para problemas como a evasão escolar e a violência no entorno do quilombo. Nessa toada já criaram um concurso de redação, participaram de feira literária. A ideia, agora, é organizar o sarau “Nada da gente sem a gente” e, mais adiante, publicar um e-book.

Exemplo, portanto, de uma escola que debate, problematiza a realidade em que está inserida a partir de variados olhares e pontos de vista. No caso da escola quilombola, a partir de um olhar decolonial. O próprio Milton Santos destaca esse protagonismo.

Defensor da ideia do uso político de um território, escreveu um primoroso artigo para o jornal Folha de São Paulo no ano 2000. O texto entitulado“Ser Negro no Brasil hoje” traz: “ Ser negro no Brasil é frequentemente ser objeto de um olhar vesgo e ambíguo, (...) enviesado (...). Enfrentar a questão seria, então, em primeiro lugar, criar a possibilidade de reequacioná-la (...), e aqui entra o papel da escola (...)”.

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