Fui convidado, meses atrás, a integrar a comissão de júri da Semana de Arte e Cultura, atividade que marcaria o encerramento do semestre letivo de um colégio de Salvador. A missão que cabia a nós, jurados, me pareceu bem simples em princípio: escolher a melhor performance do “Desfile Literário”, como o concurso fora batizado.
Não havia nada de simples, porém. Tive a exata noção disso quando vi, surpreso, os concorrentes surgindo por detrás das cortinas de veludo do teatro e, um a um, apresentarem-se à plateia e aos jurados. Ali estavam estudantes caprichosamente fantasiados como autores ou personagens dos livros de que mais gostavam.
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Venceria o concurso quem melhor pontuasse em categorias como, por exemplo, criatividade e originalidade.
Acompanhei surgirem no tapete vermelho, sob canhões de luzes coloridas e uma estridente chuva de aplausos, as figuras de Simone de Beauvoir, Chimamanda Adichie, Jorge Amado, Firma Maria dos Reis, Fiódor Dostoiévski, Conceição Evaristo. E mais.
Desfilaram diante de nós criaturas como Capitu, de Machado de Assis, Dom Quixote, de Cervantes, Tia Nastácia, de Monteiro Lobato. Quinze competidores que investiram tempo, energia e algum dinheiro em belas caracterizações.
De todas elas, entretanto, impressionou-me em especial a mais feia figura em cena. Um inseto gigante, uma espécie de barata ou besouro rola-bosta, não sei ao certo, com várias perninhas finas, todas presas à couraça por uma série de barbantes.
Enquanto andava pelo palco, o estudante mexia os barbantes, e as pequenas pernas articuladas pareciam vibrar. Reconheci de imediato. Tratava-se de uma referência a Gregor Samsa, o caixeiro-viajante transformado em inseto monstruoso no extraordinário (e asqueroso!) A Metamorfose, de Franz Kafka.
A novela, uma das maiores já publicadas na história da literatura, está entre os livros alçados ao patamar de “obras seminais”, ou seja, aquelas elevadas ao Olimpo dos clássicos, uma vez que se perpetuam graças às continuações que ensejam ou às inspirações que alimentam. Textos que “grudam”, “colam” no pensamento coletivo, em razão, obviamente, da qualidade da trama, mas, também, pelas questões suscitadas.
Com realismo deveras impactante, Kafka nos coloca diante de nós mesmos, individualistas, cruéis, alegoricamente transformados em insetos, pois que, quanto mais egoístas nos tornamos, mais do humano nos distanciamos. Samsa, um homem simples, ordinário, sofre as consequências das opressões cotidianas numa sociedade patriarcal, violenta, insensível.
O professor da Escola de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Kelvin Falcão Klein, ao mencionar obras literárias importantes para pensar o Brasil, reflete acerca do pensamento kafkiano como “algo que nunca se realiza, nunca termina, nunca se concretiza, mas que instaura um ambiente de tensão, pesadelo e violência (por vezes direta, por vezes indireta, simbólica) ”.
É justamente neste ambiente de permanente tensão, a tensão que resulta das violências produzidas pelo racismo, que o premiado autor Aldri Anunciação instala a trama do seu mais novo livro, Pretamorphosis: biografia não autorizada de um ex-branco (Malê, 2023). Apresentado como um “vertiginoso enredo com ares (pseudo) kafkianos”, o livro referencia-se, entre outros clássicos, no próprio A Metamorfose, ao menos em parte.
Ambas são novelas literárias; ambas têm, como personagens centrais, homens de classe média, “a classe vaidosa”, como ironiza Anunciação. Gregor Samsa parece inspirar o nome do protagonista de Pretamorphosis, Gregório, também este acossado por uma “metamorfose”. Neste caso, um homem branco transformado fantasticamente em homem negro a partir de uma imbricada sequência de eventos, que incluem a visita a um prédio de luxo, uma festa Black Lounge, drinks misteriosos e uma enigmática lagartixa.
Em uma sociedade que se quer branca, como diz o autor, Gregório, enegrecido, vê-se transformado naquilo que ele mais rejeita, e a partir do “processo de pretamorphosis”, vulnerável, abandonado, preso num limbo identitário.
Aqui reside, aliás, o grande mote da história. Ao longo de pouco mais de cem páginas, acompanhamos os conflitos de um ex-branco em constante fuga e negação de si.
Testemunhamos um Gregório em surto “anti-negritude”, um sujeito narcisista atormentado pela nova imagem (negra) refletida num copo de vidro, no espelho do quarto, na vidraça de um apartamento, no mármore de uma mesa de restaurante. Em suma, um sujeito atormentado em ver ruírem privilégios de que gozava até a sua transformação étnica.
O périplo fictício do personagem, revelar-se-á, ao final, uma “jornada de resgate da verdadeira identidade”, não sem antes terem sido construídas novas relações, essas baseadas em cumplicidades e afetos. A história nos oferece a oportunidade de refletir naquilo que escreveram intelectuais negros como Frantz Fanon e Neusa Santos Souza, tais quais Kafka, autores de obras também seminais.
Em Tornar-se Negro, livro que inaugura o debate sobre racismo a partir de referenciais psicanalíticos, e que completa 40 anos de lançado em 2023, Santos Souza diz: “ser negro não é uma essencialidade, mas um tornar-se”. Ser negro é um devir.
Ricardo Ishmael
Ricardo Ishmael
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