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Literatura

Um conto (quase) real

Na coluna, Ricardo Ishmael apresenta uma versão pessoal – e ficcional – para a fundação da Biblioteca Nacional, que completa 215 anos no domingo

Ricardo Ishmael • 27/10/2023 às 7:30 - há XX semanas

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Corria à boca pequena que o Príncipe Regente não andava bem da cabeça. Perdera o lendário apetite; já não era flagrado a roncar e a babar nos finais de tarde, entre os macios estofados palacianos. Também deixara de responder às provocações de Dona Carlota Joaquina, o azedume em forma de pessoa, sempre a reclamar da vida.

Alheio a tudo aquilo, Dom João errava pelos compridos corredores da Casa Real, sozinho, cochichando como se confidenciasse segredos a ele mesmo. Às vezes parava nos cantos, os olhos voltados para os jardins lá embaixo, os lábios a balbuciar palavras incompreensíveis.

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					Um conto (quase) real
Visita orientada na Biblioteca Nacional acontece de segunda a sexta. Foto: Biblioteca Nacional/ Facebook

À distância, como mandava a prudência, os ajudantes de ordem observavam Sua Majestade, entre expressões de riso e de susto. Alguns (não muitos) temiam que ele estivesse variando das ideias tal qual a mãe, Dona Maria, a Louca, e, por precaução, guardavam facas, escondiam cordas, trancavam janelas.

Dom João, em verdade, estava a queimar os miolos em busca de uma solução para o quiproquó em que se metera. Tinha, de um lado, Napoleão Bonaparte bafejando no seu gordo cangote, à espera de que o regente de Portugal aderisse ao Bloqueio Continental e, somando-se à França, Espanha e outras nações europeias, declarasse guerra à Inglaterra.

Do outro, a própria Inglaterra, nação amiga, parceira comercial de longa data, potência militar com quem também não convinha comprar briga. O que fazer, ora pois, diante desse imbróglio? A resposta – entendida como aviso divino – veio num sonho.

Dom João viu-se galopando, lépido e fagueiro, por lindos campos tropicais, um enxuto Príncipe Regente remoçado graças aos puros ares do Brasil, a saborear as delícias das terras de além-mar, mangas, mangabas, cajus, sapotis... Ah! Os sapotis!

E, obviamente, as suculentas coxas de galinha, as costelas do porco baé, os peixes de aroma inebriante preparados à maneira dos bugios. Folgava o monarca à sombra de oitizeiros, cercado da boa gente brasileira, tão dócil, tão amável, tão solícita ao ponto de, sem exagero, lembrar um povo verdadeiramente civilizado.


				
					Um conto (quase) real
Visita orientada na Biblioteca Nacional acontece de segunda a sexta. Foto: Biblioteca Nacional/ Facebook

Não teve dúvida. Abandonando o desânimo em que se havia mergulhado, convocou os ministros palacianos para uma audiência. Determinou que a corte pusesse-se a arrumar baús, malas, caixotes, e neles metesse roupas, cacarecos de toda ordem, sem esquecer, naturalmente, dos documentos oficiais do reino, tudo quanto fosse necessário para, no Brasil, remotamente, seguir tocando a

administração da Coroa. Assim, num frio domingo de outono, no Ano do Senhor de 1807, pouco antes de a França invadir Portugal, Dom João e seu séquito fugiram distintamente rumo à colônia.

A vistosa comitiva contava com milhares de almas brancas enfiadas em naus, fragatas, brigues, escunas, sem contar a Armada Britânica gentilmente cedida para escoltar a trupe real. Ainda nas águas do Tejo, ao ouvir a salva de tiros sinalizando a sua partida, Dom João dirigiu-se até o convés do seu navio, o Príncipe Regente, de onde observou a Esquadra Real pronta para zarpar.

Ao voltar-se no sentido do Palácio da Ajuda, prédio em que fora instalada a Real Biblioteca Portuguesa, Sua Majestade gelou: esquecera de embarcar seus milhares de livros, coleções sobre religião, história, filosofia, belas-artes, os títulos raros de ciências naturais, os atlas, as cartas geográficas, as estampas que tanta inveja causavam nos demais monarcas europeus.

Chamado aos berros, Dom Rodrigo Coutinho, conselheiro do regente, pôs-se a cumprir as suas ordens: desconvidou dez por cento dos nobres que ocupavam cada uma das embarcações, e em seu lugar acomodou o máximo de livros que conseguiu.Pânico absoluto entre os preteridos.

Na iminência de serem deixados para trás, o que significava cair nas garras (leia-se, na espada) do Imperador Bonaparte, os fidalgos portugueses tentaram negociar a sua permanência na comitiva. Não faltaram rogos, súplicas, apelos para que fosse dado o famoso “jeitinho português” em seu favor. Ofereceram muitas patacas, moedas de outro, obras de arte.

À beira do desespero, um abastado comerciante de tecidos chegou a sugerir ao ilustre conselheiro, viúvo não fazia muito tempo, que aceitasse sua jovem filha para novo matrimônio. Nada surtiu efeito, porém. Ante um Coutinho irredutível, seiscentos nobres foram substituídos por sessenta mil livros. Com os porões abarrotados, rumaram os navios do cais de Belém em direção aos cálidos trópicos.

Não demorou, entretanto, para os perrengues aparecerem. No dia de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Portugal, os viajantes foram surpreendidos por uma violenta tempestade. Parte da velha frota perdeu mastros, velas arruinaram-se.

A partir dali, e até o fim do percurso, a comitiva enfrentou toda sorte de percalço. Uma infestação de piolhos obrigou Dona Carlota Joaquina e as demais mulheres a bordo a rasparem os cabelos. Vieram, na sequência, casos de insolação, desidratação, o racionamento de comida. Habituados aos luxos da nobreza, os passageiros viram-se obrigados a andar entre ratos, galinhas, cabras, a regular o tempo do banho, a compartilhar os sanitários.

Na altura da costa brasileira, quase dois meses após a fuga de Lisboa, a Esquadra Real encontrou-se em meio a um surto de diarreia. Como não havia banheiros suficientes, restou à comitiva arriscar-se nas bordas dos navios. Dia e noite, sob sol ou chuva, punham-se mulheres e homens de cócoras, as brancas bundas voltadas ao mar e, assim, aliviavam-se, àquela altura já sem qualquer resquício de pudor.

Os ataques de piriri aumentavam a cada dia, ao ponto de, em certos momentos, dezenas de pessoas serem vistas, ao mesmo tempo, correndo desesperadamente às balaustradas. Agravando o quadro, Dom João ordenou o racionamento da água doce. As poucas tinas restantes foram reservadas para matar a sede da corte até o desembarque em Salvador.

Encurralados entre a escassez de água potável, e a impossibilidade de recorrerem à salmorosa água do mar para o asseio íntimo, os desarranjados portugueses encontraram o que precisavam na preciosa coleção real. Desse modo, página por página, desapareceram em meio à caganeira geral livros que haviam resistido ao terremoto que atingiu Lisboa meio século

antes, inteiros compêndios sobre como catequizar indígenas escritos pelos abnegados padres da Companhia de Jesus. Reduzidos a bolotas de cocô, sumiram nas águas do Atlântico tratados sobre eugenia, ricos estudos sobre supremacia racial.

Raro exemplar de Os Lusíadas, a obra de Luís de Camões escapou ao monumental cagaço graças à rápida intervenção de um marujo analfabeto, encantado que ficou com as belas ilustrações da capa.

Diante de uma Salvador em festa, desembarcou a comitiva cheia de piolhos, sarnas, cólicas, peidos e arrotos, e com alguns milhares de livros a menos. Depois de alguns dias hospedado no Palácio do Governador, Dom João tomou o caminho do Rio de Janeiro.

Lá decidiu instalar, nas catacumbas do Carmo, os livros da sua Real Biblioteca. As obras que não sucumbiram aos ratos, às traças, às tormentas e à fenomenal desinteria portuguesa dariam origem, pouco tempo depois, à extraordinária Biblioteca Nacional, um patrimônio do Brasil.

Imagem ilustrativa da coluna Clube do Livro
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