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Clube do livro

Vamos brincar de boneca?

Conto livremente inspirado no livro “Kafka e a Boneca Viajante”, de Jordi Sierra e Fabra (Martins Fontes, 2006).

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Ricardo Ishmael

20/10/2023 às 7:30 • Atualizada em 20/10/2023 às 15:42 - há XX semanas
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Devorado pela tuberculose, o velho escritor arrastava-se por entre as árvores. Nem de longe demonstrava o entusiasmo de antes; em verdade, perdera o interesse em quase tudo à sua volta, especialmente nos habituais passeios pelo Parque Steglitz.


				
					Vamos brincar de boneca?
Ilustração: Rebecca Green

Os muitos jardins, os lindos lagos, os ventos que, mornos no verão, farfalhavam a copa das frondosas tílias. Nenhuma dessas miudezas, outrora tão fascinantes, fazia sentido agora que a doença avançara. O mundo tornara-se débil, sem brilho. Se dava seguimento às caminhadas diárias, custosas em razão das frequentes crises de falta de ar, devia menos à própria vontade e mais às ordens médicas.

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Naquele dia, porém, algo se passou de modo diferente. Tendo atravessado uma simpática pérgola, foi-se o escritor abancar-se num assento de concreto às margens duma queda d’água. Procurou o canto mais afastado, à distância razoável de qualquer outro ser humano. Instantes depois, vindo de trás de si, um choro inicialmente miúdo, e logo em seguida convulsivo, arrancou-lhe do silêncio em que se fechara.

Avistou uma criança, uma menina cheia de sardas, oito ou nove anos de idade, se muito. Estava ajoelhada na grama, a cabeça pendendo para a frente, as mãos apertando a barra do vestido azul. Movido, talvez, pela culpa cristã que carregava consigo desde os tempos da catequese, sentiu-se obrigado a oferecer ajuda à pequena. Vencendo tédio e falta de ar, dirigiu-se até a menina. Sentou-se ao lado dela. Quis saber o que se passava.


				
					Vamos brincar de boneca?
Gabriela Braga

Chamava-se Elsi. Estava ali, debulhada em lágrimas, por causa de Brígida. A boneca polaca, sua única e querida amiga, havia sumido misteriosamente. Inconsolável, a menina implorava para que o escritor descobrisse o seu paradeiro. Decidido a confortá-la, ele fez o que mais sabia: inventou uma história. Disse ser um “carteiro de bonecas”. Chegara ao parque, não por acaso, para tranquilizar Elsi quanto ao destino da sua amada Brígida.

Ao contrário do que a garotinha pensava, a boneca não havia sumido, mas viajado. Desejava conhecer o mundo, aprender coisas novas. Ser livre, enfim. Prometeu que, no dia seguinte, naquele mesmo local, entregaria à Elsi uma carta da sua Brígida, postada diretamente de Londres, a primeira escala de uma longa jornada. Cessava, assim, o desenfreado pranto da menina.

No outro dia, e nos meses seguintes, Elsi e o velho escritor mantiveram encontros semanais no Parque Steglitz. Sentados na grama, totalmente entregues à leitura, deliciavam-se com as cartas que Brígida enviava dos cantos mais remotos do planeta: Paris, Veneza, Saara, Índia, Japão, México. A boneca aventureira narrava, com detalhes, tudo o que via e vivia mundo afora, as belezas dos lugares, a riqueza das gentes, tantas e tão incríveis maravilhas e descobertas.


				
					Vamos brincar de boneca?
Ilustração: Rebecca Green

“Talvez em breve”, escrevera a polaca, “conheceremos a cura da tuberculose”. Mas também noticiava as dores, a fome, a peste, as guerras do mundo. “Viver, às vezes, é perigoso”. Aqueles momentos modificaram os, agora, novos amigos. Elsi parecia mais segura de si, também ela decidida a empreender viagem, sem destino certo, qualquer dia daqueles; ele, curiosamente tomado de novo ânimo, remoçara. A fisionomia, antes macilenta, ganhou novo aspecto, próximo mesmo do saudável.

Numa das cartas, seguramente a última, Elsi entendeu que havia um conselho para ela na mensagem deixada por Brígida: “Você deve saber que viver é seguir em frente, aproveitar cada momento. Viver é hoje!”. Foi assim que, num fim de tarde, a menina arrumou a mochila, saiu de casa, desapareceu sem deixar notícia alguma.

Desolado, o velho escritor abandonou as idas ao parque. Como a saúde voltou a piorar, terminou sendo instalado em um dos quartos do longínquo Sanatório Hoffmann. Tempos depois, num cálido dia de verão, sob o tímido sol de Kierling, o escritor foi encontrado recostado no banco do jardim, a cabeça inclinada sobre um grosso cachecol azul. Havia morrido de tuberculose e de saudade.

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