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Gestão e Carreira

Direito como linguagem de poder e cultura: a trajetória de Luíse Reis

Nesta entrevista, advogada fala de diversidade, cultura, desafios da advocacia feminista e dos novos caminhos do Direito

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Cristiano Saback

01/09/2025 às 10:20 - há XX semanas
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Aos 46 anos, Luíse Reis é licenciada e bacharela em Letras pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com pós-graduação em Análise do Discurso. Dez anos após a primeira formação, graduou-se em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Professora, publicitária e hoje advogada, já atuou na defesa dos direitos das mulheres, foi vice-presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB-BA e, atualmente, ocupa a Diretoria de Relações Institucionais da Comissão Especial de Direito, Cultura e Entretenimento da OAB.


					Direito como linguagem de poder e cultura: a trajetória de Luíse Reis
Direito como linguagem de poder e cultura: a trajetória de Luíse Reis. ​Foto: Arquivo Pessoal

Luíse começa com uma audiodescrição: "Olá, Cristiano. Agradeço o convite. Vou começar com uma breve audiodescrição: sou uma mulher negra, de pele não retinta, tenho 46 anos, uso óculos lilás de acetato, meus cabelos são crespos, médios, cacheados e com luzes. Tenho tranças longas em cada lateral e, neste momento, estou na minha sala, com uma parede de tijolos atrás e um quadro da Santa Muerte, entidade do México."

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Entrei no Direito de forma consciente. Eu sabia que essa era uma linguagem de poder, e para me sentir valorizada enquanto mulher, negra e lésbica, eu precisava estar do outro lado do jogo. Luíse Reis

Cristiano Saback: Luíse, você começou a sua atuação profissional em Letras e só depois foi para o Direito. Como se deu essa escolha?

Luíse Reis – O Direito entrou na minha vida dez anos depois da minha primeira formação, que foi em Letras. Dei muitas aulas de literatura e redação em escolas públicas e particulares de Salvador e região metropolitana. Trabalhei, também, como redatora publicitária e, nesse período, a UCSAL (Universidade Católica de Salvador) era cliente da agência onde eu atuava. Graças à uma campanha publicitária, que virou uma noite, tive o desafio de cursar o bacharelado em Direito na Universidade Católica. Entrei nesse curso de forma consciente. Eu sabia que era uma linguagem de poder e para me sentir valorizada enquanto mulher, negra e lésbica, eu precisava estar do outro lado do jogo. Posso dizer que alcancei, minimamente a minha meta, Eu entendo que estou ocupando uma fissura nesse sistema, mas nem sempre esse lugar é confortável. Sou uma exceção à regra. Esse é um espaço de desafios. Agora que cheguei e domino essa linguagem, meu compromisso é elaborar esse poder a partir das questões de gênero, raça e linguagem.

CS: Quando falamos em metas, penso em pequenos passos que nos levam até o objetivo final. Então, me diz: qual é o seu objetivo hoje dentro da carreira?

LR: Saback, eu terminei a graduação em Direito convicta de que seria a melhor advogada familiarista, ou seja, na área de Direito das Famílias, também, a melhor advogada na proteção dos direitos das mulheres. Só que esses são, talvez, os ramos mais difíceis do Direito, tanto economicamente quanto psicologicamente. Isso porque eu construí uma advocacia feminista: eu só advogava para mulheres. Mas os problemas das minhs clientes passram a me afetar diretamente. Em determinado momento, afetaram até minha segurança e minha integridade física. Os agressores costumam transferir para as advogadas e apara as instituições, que defendem mulheres e crianças, suas frustrações, violência e suas insatisfações. Então, passei a ser hostilizada, assim como as próprias vítimas, cotidianamente. Nosso país vive uma epidemia de violência contra mulheres e crianças, e eu me vi dentro desse cenário também como vítima. Aí a pandemia foi um divisor de águas. Eu já pensava em uma transição dentro do Direito e esse período consolidou o movimento: hoje sou advogada da cultura. Minha especialidade e meta, agora, é ser a melhor advogada de projetos de cultura e autoralista, de Direito Autoral. Agora só quero trabalhar com entretenimento (risos).

CS: Quando você fala que advogava para mulheres, quem está de fora não imagina que, além das ameaças sofridas por essas mulheres, as advogadas também passam a ser alvo. Você está dizendo, então, que dependendo da área de atuação, advogar pode se constituir um risco?

LR: Absolutamente, sim. Há áreas em que o exercício da advocacia representa um risco real. Se o Conselho Nacional da OAB ou mesmo a OAB Bahia realizassem uma pesquisa sobre o número de mortes ou agressões contra advogados penalistas ou advogadas feministas no exercício da profissão, perceberiam a gravidade do cenário. Isso tem uma explicação: a masculinidade adoecida é uma epidemia. Ela atinge diariamente mulheres — tanto as que têm vínculo familiar, protegidas pela Lei Maria da Penha, quanto aquelas sem vínculo, que também sofrem violência. Para se ter uma ideia, em algumas audiências, a parte chega a agredir não apenas a ex-esposa, mas também a advogada, a juíza e qualquer outra mulher presente naquele espaço. É um reflexo cruel dessa masculinidade violenta.

CS: Luíse, diante desse cenário em que você se encontrava atuando, você fez a opção de migrar para o Direito Cultural. Essa foi também uma maneira de evitar o adoecimento? Como isso se deu e como você está hoje nessa nova seara?

LR: A pandemia foi um marco. E precisamos entender que aquele modelo antigo de Direito litigioso, baseado em audiências presenciais e tribunais, já estava se deteriorando. Esse modelo não funciona mais. O novo Direito precisa ser alimentado por outras práticas: já temos as câmaras de mediação, falamos em justiça restaurativa, que busca de todas as formas não levar o conflito ao Judiciário, mas sim restaurar relações. E é nesse movimento que surgem novas demandas para quem está atento. Eu sempre digo que as carreiras estão em construção. Então, se você olha e percebe que o Direito precisa estar em determinado espaço, cabe perguntar: de que forma? Durante a pandemia houve a necessidade de criar cultura e entretenimento para manter as pessoas em casa. Depois, no chamado “mundo pós-apocalíptico”, tivemos que repensar esse novo cenário. Somado a isso, vivíamos a transição de um governo que não valorizava a cultura para um contexto em que cultura e educação voltam a ser prioridades.

Esse novo fazer do Direito e da Cultura trouxe um verdadeiro boom de editais. E um edital nada mais é do que um tipo de contrato. No edital de cultura, você propõe algo e o governo diz: “aqui está o recurso para você executar, desde que atenda determinadas demandas”. Quem melhor do que o profissional do Direito para estar atento a isso?

“Autocuidado não é apenas skin care. Autocuidado também é promover lazer, pensamento crítico e espaços de criação para as pessoas. Isso vem da cultura.”

CS: Diante de tudo o que você trouxe, fica claro que você não desistiu do Direito. Pelo contrário, você ressignificou o papel dessa profissão na sua vida. Além da advocacia cultural, como você enxerga esse novo papel do Direito e quais cargos você já ocupou ou ocupa nesse processo?

LR: Saback, nós precisamos entender que velhas estruturas estão ruindo. Crises aceleraram esse processo. Não faz mais sentido nos comportarmos socialmente como antes da pandemia de Covid-19. A estrutura jurídica também ruiu: audiências passaram a ser, em sua maioria, virtuais; processos se tornaram digitais. Então, tivemos que pensar um novo modelo social para tudo, e isso inclui o Direito. Nesse mundo que eu chamo de pós-apocalíptico, me norteio por três eixos que também dialogam com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS): inovação, tecnologia e bem viver. Pensando nesses pilares, encontrei novos caminhos de atuação. Hoje, por exemplo, estou diretora de Relações Institucionais da Comissão de Direito, Cultura e Entretenimento da OAB. É uma comissão especial, criada justamente para atender a uma demanda emergente. Diferente de outras comissões, como a de Covid-19, que perdeu o sentido com o tempo, a de Cultura e Entretenimento permanece e deve permanecer. Porque cultura e entretenimento são, cada vez mais, pilares de sobrevivência.

E é importante lembrar: autocuidado não é apenas skin care. Autocuidado também é promover lazer, pensamento crítico e espaços de criação para as pessoas. Isso vem da cultura.

CS: Hoje você está à frente de um cargo de Relações Institucionais na área de cultura, mas antes ocupou outro cargo ligado à diversidade dentro da OAB Bahia, confere? Pode falar um pouco sobre essa atuação e a transição para a função atual?

LR: Claro. Primeiro é importante explicar: a cada triênio, cada seccional da OAB elege um presidente. É uma disputa política e, inclusive, prefiro usar a expressão “Ordem da Advocacia” e não “dos Advogados”, porque atualmente somos maioria advogadas. O grupo político do qual faço parte tem construído uma tradição de um novo Direito: voltado à advocacia jovem, com olhar para o interior do estado, e para a paridade de gênero e raça nos cargos de presidência, vice-presidência de comissões e diretorias. No triênio passado, tive a honra de ser vice-presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero. Foi um momento muito significativo, porque eu tinha acabado de ficar viúva da minha companheira, a delegada de Polícia Civil Débora Freitas Mendes Pereira. Então, para mim, não era apenas um cargo político-institucional, era também a afirmação da minha existência enquanto mulher lésbica. Deixamos um legado importante: transformamos a Comissão de Diversidade, que era especial, em permanente. Afinal, pessoas LGBTQIAPN+ não desaparecem. Existimos e resistimos, embora muitos corpos tombem, seja por doença, adoecimento psíquico ou violência. Garantir essa permanência foi uma grande vitória. Com o fim daquele triênio, veio uma nova campanha. O grupo venceu novamente e eu senti que era hora de buscar outro desafio. Acredito muito na alternância de poder, na escuta de novas vozes e novas corpas, porque nenhuma categoria é homogênea. Mulher não é homogênea, mulheres lésbicas não são homogêneas e assim por diante.

Já falava muito sobre gênero, raça e diversidade. Então, estar dialogando agora com as instituições de cultura era fundamental para mim. Foi nesse contexto que recebi o convite para integrar a Comissão de Direito, Cultura e Entretenimento, onde hoje atuo na diretoria de Relações Institucionais.

CS: Agosto é o mês da visibilidade lésbica, como você vê isso, especialmente no ambiente profissional?

LR: Existe uma tendência ao apagamento. Muitas mulheres lésbicas se escondem, porque se declarar ou sair do armário em determinados contextos profissionais pode gerar retaliações e situações muito violentas. Por isso agosto é o mês da visibilidade: trata-se de uma disputa política, de afirmação. Na Comissão de Diversidade, que hoje é permanente, recebemos inúmeras pessoas que, mesmo não se declarando parte da comunidade LGBT, assumem-se como aliadas. Isso fortalece um trabalho político também extramuros: iniciativas de valorização, abertura de vagas de trabalho, selos que atestam que determinada empresa acolhe a diversidade.

CS: Luíse, vi que você dá palestras também, como funciona esse seu outro lado palestrante?

LR: Saback, a OAB tem a Escola Superior de Advocacia e a atuação política institucional, mesmo sendo voluntária, prepara bastante para isso. Como eu falei, é sempre um desafio. Ao longo dos quase 15 anos que tenho de advocacia, fui forjada nesse caminho. Já dava aulas, mas passei a me preparar cotidianamente para falar em público. Existe também um projeto da OAB chamado OAB vai às escolas, no qual realizamos palestras sobre diversidade, questões raciais e combate à violência doméstica. Nesses casos, sou convocada a falar sobre todos esses eixos que dialogamos aqui.

Então, sim, estou palestrante, sim. Uma speaker (risos).

CS: Dentro da sua atuação, fica claro que você está na linha de frente da advocacia, mas também envolvida em gestão e políticas públicas, trazendo pautas importantes para a sociedade. Você mesma se coloca como agente modificadora, junto com o órgão em que atua. Com 15 anos de carreira, quais são hoje os novos desafios ou projetos que considera mais importantes?

LR: Vou falar de dois projetos pessoais que estão me nutrindo neste momento. O primeiro é o Black Media, no qual sou assessora jurídica desde quando ainda era um embrião, chamado na época de Blackfam. No início, fazíamos uma curadoria de notícias voltada para mulheres e jovens negras. Hoje, repensando nossos objetivos, ampliamos o escopo: passamos a incluir outras características e gêneros, transformando-o em uma mídia racializada. O importante é não deixar ninguém dos nossos para trás. O segundo projeto é o Cartas para o Futuro, que estou desenvolvendo para o Hospital da Mulher, em parceria com iniciativas públicas e privadas. A ideia é que, durante o tratamento oncológico, as assistidas participem de oficinas e possam deixar cartas: cartas de intenção, de desejo, cartas para o futuro. São dois projetos que me alimentam, porque acredito que a carreira precisa nos motivar a levantar todos os dias com a certeza: “Hoje eu vou trabalhar para isso”.

CS: Quando você fala da importância de carreiras que nos motivem, qual é o recado para os estudantes, recém-formados e profissionais do Direito?

LR: Que não pensem o Direito apenas como forma de subsistência financeira. Pensem no Direito como um canal de pertencimento. A gente ouve o tempo inteiro que somos “operadores do Direito”. Pois bem: para operar algo, inclusive um milagre, é preciso se sentir parte daquilo. O pertencimento, para mim, foi a chave para me motivar, para sair de um ciclo adoecido, cansado, tanto coletiva quanto individualmente. Então, a mensagem que deixo é: pensem que todos os dias vocês podem fazer algo que vai mudar a vida de alguém.

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