Com uma trajetória que une técnica e sensibilidade, Nívea Gonçalves, natural de Salvador (BA), construiu uma carreira que une técnica e sensibilidade, com uma trajetória marcada pelo compromisso com a justiça diante das questões que envolvem infância e juventude, Nívea é advogada, mestre em Ciências Criminológico-Forenses e professora universitária.

Especialista em direitos da criança e do adolescente, ela tem se destacado por unir conhecimento técnico, olhar humano e atuação firme em causas complexas. Nesta entrevista, Nívea fala sobre a origem dessa vocação, os caminhos que a levaram à advocacia e como enxerga a justiça como instrumento de transformação social.
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Cristiano Saback: Como surgiu seu interesse pelo Direito e seguir a carreira nessa área?
Nívea Gonçalves: Saback, eu e o Direito tempos uma ligação de alma. Venho de uma família bem tradicional na sua estrutura. Minha mãe era professora. E eu na escola, quando era criança, me lembro que já tinha esse instinto protetor como meus coleguinhas. Inclusive quando pareciam desamparados. Essa postura me acompanha até hoje: senso de justiça, de acolhimento e de equilíbrios nas relações sociais. Escolher o Direito veio de um caminho curioso. Conclui o ensino médio me formando no curso técnico de Edificações. Trabalhei um tempo na área. Depois investi na carreira de comissária de bordo. Passei no exame da DAC e comecei a voar. Atuando nessa área foi quando o Direito começou a me chamar. Eu discordava de posturas e regras que não faziam sentido nas relações trabalhistas e com os próprios cientes. Nessa época morava em São Paulo, por causa do trabalho. Foi quando resolvi atender ao “chamado” do Direito. Voltei pra Salvador e fiz a graduação, depois fiz uma pós em Direito Público com ênfase em Ciências Criminais. Nessa época já tinha o olhar voltado para a infância e juventude. Mais tarde me aprofundei e fiz um mestrado em Criminologia com a dissertação voltada para o ato infracional praticado por adolescentes e o lugar que eles ocupam na sociedade à luz das teorias criminológicas. Esse interesse específico sempre me acompanhou na graduação, na especialização, no mestrado e na vida. É uma missão.
CS: Então essa sua escolha vem também do instinto de impacto social no exercício da sua profissão?
NG: Exatamente! Sempre me preocupei muito com quem está em situação de vulnerabilidade. O direito, para mim, é mais do que uma profissão: é instrumento. Enxergo fazer justiça como a oportunidade de gerar equilíbrio e transformação social.
CS: Você tem um direcionamento na sua carreira voltado para o Direito Penal e o Direito da Criança e do Adolescente. Como elas se complementam na sua atuação?
NG: Isso casa completamente, Saback. Porque eu atuo com adolescente autor de ato infracional. Quando, já na faculdade, tive contato com a disciplina do Direito da Criança e do Adolescente, que era optativa, despertou vários gatilhos e pensei: “’é por aqui que vou seguir”. Decidi me debruçar sobre o direito das crianças justamente para conversar com a criança que eu fui e dizer para ela: agora você está protegida”. Esse encontro da advogada criminalista e e especialista em infância é, na verdade, duas partes da minha própria história. A partir daí comecei a estudar com profundidade sobre atos infracionais cometidos por crianças e adolescentes. Dessa maneira, mergulhei também no Direito Penal, porque para compreender as violências que atingem essa camada da população, eu preciso entender as bases do crime.
Essa conexão entre o Direito Penal e o Direito da Criança e do Adolescente é essencial. Um exemplo atual são os casos de cyberbullying, que passou a ser crime só agora em 2024. Mas quando eu falo de um adolescente, eu não posso dizer que ele cometeu um crime, na verdade ele praticou um ato infracional. É aqui entra a minha atuação e o meu olhar. No patamar da vulnerabilidade eu preciso entender o que levou o adolescente a agir assim. Não é passar a mão na cabeça, mas entender o “como” ajudar a corrigir o rumo, já que é um cidadão ainda em desenvolvimento. Essa é a minha paixão: enquanto há tempo, é porque há possibilidade de reconstrução. A adolescência é uma fase que a gente ainda consegue acolher, tratar e transformar. O problema é quando a sociedade quer resolver o adolescente “à toque de caixa”.
CS: Como profissionais de outras áreas (médicos, professores, psicólogos, etc), devem agir quando procurados diretamente por um adolescente?
NG: Saback, essa pergunta é fundamental. É justamente aí que entra a necessidade de um profissional do Direito para fazer os encaminhamentos corretos. Um exemplo, dentre vários, foi quando uma dentista entrou em contato comigo, suspeitando da cliente criança estar sendo abusada pelo pai. A menina havia deixado um bilhete no banheiro do consultório. Dei toda a orientação para ela, inclusive para preservar a segurança e o direito da criança. Ao final o Conselho Tutelar teve que intervir. Em casos extremos como esse é o primeiro e mais importante encaminhamento. Se qualquer outro profissional suspeitar que “tem algo de errado” acontecendo com a criança ou adolescente, deve-se procurar o órgão competente. Seja por uma situação de risco decorrente de uma ação ou omissão da família, da sociedade ou do próprio estado.
CS: A minha pergunta é porque a maior parte dos profissionais e os pais e mães desconhece o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).
NG: É importante deixar claro que o poder familiar, não é um poder absoluto. É um poder-dever. Os pais têm o dever de zelar pelo bem-estar dos filhos, não têm o direito de impedi-los de exercer os seus próprios direitos. A criança e adolescente, por exemplo, têm direito à saúde e pleno desenvolvimento integral e isso não pode ser negligenciado. São muitas camadas. Não somente os pais são ignorantes nesses aspectos, já vi outros profissionais agindo de forma que violam os direitos das crianças e dos adolescentes. É preciso atenção. A responsabilidade aqui com essa camada da população é solidária. Dentro do aspecto legal muitas vezes no que diz ao núcleo familiar a gente tem que esclarecer que filhos não são propriedade dos pais. Toda a atuação parental deve privilegiar o que é melhor para o adolescente seja para a sua segurança, saúde, dignidade e desenvolvimento. E no que tange aos profissionais que lidam com crianças e adolescente, eles sempre têm que estar dispostos a ouvir de forma atenta e empática, mas não invasiva. Sempre com a clareza dos limites éticos e legais.
CS: Como você se mantém atualizada diante das mudanças constantes do Direito e da sociedade?
NG: Saback, o Direito se transforma todos os dias. Na advocacia, atualização constante não é luxo, é sobrevivência. Quando a gente lida com Direito Penal e com o Direito da Criança e do Adolescente, por exemplo, qualquer mudança pode alterar completamente a forma como o caso deve ser conduzido. No meu caso, eu acompanho diariamente as decisões dos tribunais superiores, principalmente do STJ (Superior Tribunal de Justiça), que tem um papel fantástico nas matérias que envolvem infância e juventude. Vale destacar a ministra Nancy Andrighi, que é uma referência nesse campo, aplicando a proteção integral de uma maneira muito sensível. Recentemente dei um curso sobre ECA Digital, que é uma atualização essencial para trazer o Estatuto para a linguagem tecnológica e aproximar a legislação das escolas e da sociedade. É importante falar que atualização não é somente um pós-graduação. Atualização pode vim de cursos livres, leituras diárias e muita disciplina e comprometimento com o próprio oficio.
CS: Nívea, além da advocacia, você também é professora universitária, dá aula em cursos preparatórios e de Pós-Graduação. Como a sua experiência em sala de aula influencia a sua prática profissional e vice-versa?
NG: Saback, eu amo a advocacia. Mas sou apaixonada pela docência(risos). Lembro de uma vez, quando fui renovar o meu visto, o funcionário da imigração me perguntou: “você é advogada ou professora?”. Respondi: “Sou advogada e amo ser professora.” Ele sorriu e aprovou o visto. A docência para mim faz diferença na minha atuação profissional. É uma missão. Sou filha de professora, já trago isso no sangue e percebo o poder transformador que a educação tem. O Direito busca justiça, mas é na educação que a gente transforma vidas. Quando estou na sala de aula trago a prática viva da advocacia. Não falo apenas de artigos e parágrafos, trago casos reais, situações concretas, dilemas humanos. Gosto das vivências que sensibilizam e que fazem o aluno refletir e perceber o impacto social do que está aprendendo. Ao longo dos anos tenho acompanhado sementes florescerem. Hoje tenho ex-alunos que militam na área da infância, publicam obras e que se tornaram defensores da juventude. Aí que olho para isso tudo penso: “é assim que se transforma a sociedade. Vamos em frente. Um aluno por vez” (risos). E não é só na faculdade que atuo como professora, percebo o impacto do meu conhecimento em outras esferas. Imagine você que já dei um curso para formação de juízes, capacitando todos em Infância e Juventude. Eram 60 magistrados aprendendo sobre o ECA. Ali o desafio não era ensinar o texto da lei, mas sensibilizar o coração jurídico para fazer leituras de casos envolvendo crianças e adolescentes. É preciso humanizar o Direito e sensibilizar o coração jurídico nessa área. Quando olho para minha trajetória profissional eu penso “Não sou rica. Sou normal. Mas conquistei valores que o dinheiro não pode comprar”.
CS: Qual mensagem você deixa para estudantes e profissionais de Direito que desejam construir uma carreira com propósito e que tenha impacto social?
NG: Saback, Direito envolve vocação, fé, coragem e compromisso. E vocação é algo que sustenta quando tudo parece que vai desabar. Ao longo da carreira vão aparecer muitos obstáculos e alguns desses vão fazer você pensar em desistir. Vai encontrar pessoas querendo se aproveitar de você, vai se deparar com situações injustas e até encaram momentos que o reconhecimento não vem. Mas se o que te impulsiona é a sua missão, nada disso lhe derruba. No direito não dá pra ser apenas mais um, é preciso querer fazer a diferença. A diferença em cada gesto, em cada caso e em cada pessoa que você escuta. É entender o direito como instrumento de transformação. Exercer o direito não é sobre atuar com holofotes e pelo status. É atuar de forma que não se passe despercebido pelo mundo.
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