Jornalista com mestrado em Comunicação, que já fez curso de cinema em Cuba e que neste momento está fazendo um mestrado em cinema (com não podia deixar de ser!) na Espanha, mais precisamente em San Sebastian. Ela é Vilma Martins e, entre suas andanças atuais em terras espanholas, ela me deu uma aula-entrevista sobre o que é a falta de representação no cinema nacional, sobre desafios da pandemia e sobre sonhar e realizar aquilo que pulsa lá dentro.
Conheci Vilminha nos corredores e aulas de cinema na UFBA e sua trajetória e seus corres me inspiram imensamente, mostrando como tudo é possível e os caminhos se abrem quando a gente abre caminho. Mergulhe nesse universo de Vilma Martins e nos desafios e maravilhas do cinema baiano comigo.
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1. Como está sua relação com o cinema baiano hoje em dia?
Desde que criamos o Coletivo Sujeito Filmes e adentrei realmente no cinema, descobri um mundo que realmente não fazia ideia e estava tão próximo de mim. Ninguém me ensinou sobre cinema baiano, sergipano, cearense, ninguém me falou dos pequenos festivais fora do Rio e SP, ou das pequenas produtoras regionais. Falam da história do cinema brasileiro muito voltado para literatura, e mais para quem ia fazer vestibular para humanas.
Meus pais também me incentivaram a ver filmes não tão hegemônicos, mas nem eles tinham acesso a essa história do cinema nacional. Por isso demorei também para fazer cinema, achava que era impossível uma jovem negra baiana trabalhar com isso, ainda mais não tendo ninguém na família da arte/cultura.
No curso de cinema que passei e conheci Heraldo e Djalma, foi a primeira vez que vi pessoas como eu tentando ou fazendo cinema, isso foi um choque, mas também alegria. Essas pessoas me mostraram um cinema baiano muito além de Glauber Rocha e o Cinema Novo. Conheci também o cinema negro, e só pensava: 'como é possível uma cidade como Salvador, não ter várias produtoras, festivais, ações de cinema negro? Como é possível que as referências do cinema baiano sejam só brancas e com negros na maioria das vezes em lugares subalternos?'
Além disso, também coletivizamos o audiovisual baiano, porque com outros coletivos negros nos ajudamos, fazemos parcerias, fazemos isso aqui, nos referenciados. E se o serviço público e o poder hegemônico ainda não nos dá o reconhecimento e pagamento que merecemos, nós seguimos fazendo esse cinema (in)dependente, por mais que hoje já tenhamos o nosso sucesso. Seguimos ensinando ao mundo que podemos e somos capazes, como a Saturnema Filmes e a MIMB, fazem. Porém é um longo caminho a ser percorrido.
Eu tenho um lema que minha amiga, Marise Urbano, me ensinou, que diz: “Para os nossos - amigos, aliados, coletivos - fazemos tudo”. Então, como produtora, roteirista e agora curadora/distribuidora eu ajudo os meus a contarem suas histórias, a sonharem, assim como eu sonho e sonhei. Participar de entrevistas assim, é também uma forma de atuar no cinema baiano, não para ser exemplo, pois cada um tem sua trajetória, mas para incentivar os que vem e dizer que estamos disponíveis para realizar.
2. Me fale dos seus trabalhos mais especiais e significativos.
Não poderia não falar de 5 fitas, meu primeiro curta oficialmente como roteirista e diretora. Fiz alguns trabalhos na faculdade que, apesar de não terem sido exibidos em outros lugares, fazem parte da minha trajetória e me levaram a estar aqui hoje, trabalhando com cinema. Só que 5 fitas mudou minha vida, não só financeira, mas também meus anseios e lutas.
A Sujeito Filmes já existia, o nosso primeiro curta, Sujeito Objeto, já havia alcançado bons frutos e eu estava contente em ser produtora. Só que eu queria também escrever, por isso fui fazer um curso de roteiro na UFBA e foi quando Heraldo me falou da ideia do curta, me convidando para escrever e dirigir com ele. No início parecia que eu estaria sendo falsa, a ideia era dele, a história do tio dele, não sabia como podia contribuir. Porém, lendo a primeira versão eu vi como a história me contemplava, dois irmãos/irmãs traquinas criados por vó, Lavagem do Bonfim, fé, tudo que mais amo.
Assim fui ganhando mais confiança, vi que gostava de escrever junto, de participar de laboratórios e fazer consultoria. No ano que escrevemos 5 fitas eu comecei a escrever a star vídeo, um romance água com açúcar entre duas mulheres negras que querem realizar seus sonhos, uma homenagem a minha mãe, mulher forte, romântica e sonhadora. Mas como disse, era muito insegura para escrever meus próprios roteiros, Heraldo e Djalma me incentivaram e star vídeo passou em dois laboratórios.
Infelizmente naquele momento eu precisava de aprovação externa para continuar seguindo no cinema. E aí fui fazer 5 fitas, me descobri enquanto diretora também e vi que esse era o cinema que queria fazer, por mais difícil que seja, cinema coletivo e que conte nossas histórias.
5 Fitas from Veja Filmes, Viva Mais! on Vimeo.
3. Como você tem visto o cinema e o audiovisual feito por mulheres na Bahia ultimamente?
Acho que aqui tem um pouco do que falei do cinema baiano, pois como Angela Davis e outras tantas pensadoras, eu acredito que raça, gênero e condição social estão intimamente ligadas. Cada caso é um caso, eu sou uma mulher negra, baiana, mas sou de classe média, porque meus pais sofreram o que hoje vejo minhas amigas periféricas sofrerem para que seus filhos tenham uma condição digna.
Só que meus pais viviam numa época em que as lutas eram diferentes. No interior da Bahia nos anos 60-80 não falava em feminismo, gênero, homofobia. Se falava de luta social, e mesmo assim era diferente das grandes cidades. Mesmo assim, de alguma maneira, minha avó e mãe sempre me ensinaram com atitudes e pensamentos sobre o que é ser feminista, meus pais me ensinaram sem livros sobre a importância de governos que pensem no social, nas minorias.
Com isso, sempre me envolvi nas lutas, e isso não seria diferente no meu trabalho. Isso se reflete no que faço e penso sobre o cinema negro, cinema feminista, cinema baiano, cinema indígena e feito por mulheres e pessoas trans. A nossa luta é existir, porque durante anos pareceu que não existia nada além de papéis sexualizados, violência e com a visão branca e masculina.
Precisamos hoje não só lutar para mais diretoras, fotógrafas e produtoras mulheres, precisamos de mais mulheres, LGBTQIA+, negres, indígenas, como curadores, distribuidores, agente de vendas, pesquisadores, do som, da edição, da maquinaria, em todos os espaços, inclusive nos lugares de onde vem o dinheiro, na política, nas empresas.
Precisamos dessas pessoas lutando para que essa luta continue, pois estamos longe de chegar num lugar ideal, principalmente porque o capitalismo e o machismo não querem perder seus privilégios e usam de qualquer forma para nos destruir, inclusive alienando-nos e usando de uma falsa representatividade para dizer que está tudo bem.
Mas é só olhar os dados reais, ou mesmo a sua volta, os ricos homens brancos ainda estão no poder, e o que temos que fazer é nos unir para construir não só um audiovisual plural, mas também uma sociedade menos injusta.
4. Você está fazendo um curso na Espanha, correto? Como está sua visão sobre a cena do audiovisual vista de fora para cá? Mudou ou expandiu alguma coisa?
Após realizar o sonho de produzir 5 fitas, ir a Cuba e estar quase terminando o mestrado, veio a pandemia e me senti perdida. Passei metade de 2020 sofrendo, sem trabalho, nossa vaquinha do filme parada, foi muito difícil. Porém, tenho a sorte de ter uma família parceira, estar com minha mãe e minha avó foi o que me deu forças para tentar e não desistir.
Então, primeiro comecei a distribuir 5 Fitas e, modéstia parte, me vi gostando e sendo boa nisso. Sendo um filme tão bem feito por nós, começamos a ganhar prêmios e visibilidade. Com a Aldir Blanc, me sentia mais confiante para tentar, e assim consegui fazer meu primeiro roteiro de longa-metragem, além de outros projetos tão importantes. Com trabalhos e dinheiro na conta, vi que estava na hora de voltar a planejar e sonhar.
Havíamos produzido um curta chamado Quantos mais?, de Lucas de Jesus, na pandemia, terminei o mestrado, mas sentia que precisava de algo a mais. Após Cuba eu sentia que precisava viajar e conhecer outros cinemas, e fazer o nosso ser conhecido também. Então comecei a me inscrever para laboratórios, cursos e fundos internacionais, acompanhava muito os grupos da Apan e do Projeto Paradiso (que me parecia um sonho participar), mas era muito difícil, a concorrência, todo mundo parecia ter um currículo muito grande, chegou num ponto que já nem esperava os resultados.
Quando comecei a trabalhar numa produtora de São Paulo, saiu o resultado do mestrado na Elías Querejeta Zine Eskola, em San Sebastian, na Espanha. Num primeiro momento, só pensei que era a melhor coisa do mundo, porém não recebi bolsa, apenas uma ajuda do Projeto Paradiso, mas a cidade é cara, e durante a pandemia as coisas estavam ainda mais difíceis.
A Espanha estava fechada pro Brasil e até quase agosto (as aulas começaram em setembro), não se sabia se iriam abrir e como seria a questão do visto, vacinas, etc. Justamente nesse período também, minha avó ficou doente e isso me deixou muito mal, totalmente desestabilizada.
Tudo isso protelou minha mensagem de confirmação para a matrícula no mestrado. Minha avó mesma me disse que eu tinha que ir, ela sabia que era importante. Cheguei aqui com toda essa carga, me sentindo perdida vivendo em dois lugares ao mesmo tempo graças a internet. Tinha reuniões no Brasil e estava na Espanha (até hoje estou assim).
Já morei duas vezes na Europa, uma quando eu era pequena e meu pai fez doutorado, e outra durante a graduação. Apesar de estar acostumada a conviver com pessoas de outro nível social e outra cor, dessa vez me senti muito perdida. O mestrado aqui é dividido em três áreas: criação, arquivo e curadoria (o que estou cursando, porém vim com um projeto também de criação).
Aqui descobri realmente o mundo do analógico, da restauração, cinema experimental e dos festivais europeus. Esse último foi um choque ver realmente como funcionam, todos esses temas, apesar de interessantes para minha formação, muitas vezes me sentia completamente fora deles. Trabalho com cinema coletivo, com cinema negro e festivais de baixo orçamento, fora dessa lógica do tapete vermelho e estreias. Voltei a me sentir a menina estranha da turma, que não pertence aqui, mas Heraldo cantou para mim a música do Emicida “Viver é partir, voltar e repartir”, a partir daí eu finalmente tracei meu plano, aprender o máximo que posso, para voltar com tudo.
Hoje sei que não podemos idolatrar a Europa, aqui está tão em crise como qualquer lugar, assim como a xenofobia, guerra e facismo ganhando espaço. Mas é possível viver aqui tendo essa consciência. Não somos piores, podemos ensinar muito, então, além de aprender, estou tentando trazer um pouco do meu trabalho para cá, estou estudando/pesquisando meu coletivo e pretendo exibir filmes aqui com essas temáticas, cinema negro (in)dependente, coletivo e baiano, juntos com outros artistas negros daqui.
Encontrei muita coisa incrível também e, apesar de ser um lugar muito fechado, quero muito poder ter essas conexões, por isso agora vou estagiar no Festival de San Sebastian, participei de dois projetos de exposições e continuo me inscrevendo nos laboratórios, fundos e cursos (certas coisas nunca mudam). Só que agora eu sei o que quero e tenho mais confiança em mim mesma.
5. Que trabalhos/filmes/mulheres da Bahia que te inspiram?
Marise Urbano, Ana do Carmo, Rubian Melo, Adriele Regine, Daiane Rosario, Aíla Oliveira, Tainah Paes, Milena Anjos, Iana Nascimento, Dani Souza, Meniky Marla, Fabiana MilhasCamila de Moraes, Luana Reis, Everlane Moraes, Dayane Sena, Patricia Bssa, Nina Novaes, Maria Carolina, Paula Gomes, Marina Alfaya, Maria Mango, Larissa Fulana de Tal, Clarissa Ribeiro, Fanny Oliveira, Fabs, Inajara Diz, Julia Moraes, Camila Hepplin, Breu, Tais Amordivino, Safira Moreira, Daiane Silva, Thamires Vieira, Flavia Santana, Morgana Gama, Nin La Croix, Camila Gregorio, Rayane Teles, Mariana Trindade, Letícia Moreira, Enoe e Hilda Lopes, Vanessa Aragão, Saturnema Filmes, Girapomba produções, Gran Maître filmes, Giro Planejamento Cultural, Alfazema Filmes, Ouriçados produções, MIMB, Feciba, Festival Mimoso de Cinema, Cachoeira Doc, Mostra Lugar de mulher é no cinema... Iniciativas que lutam por esse audiovisual baiano mais diverso.
Existem muitos mais, aí é só um pouco, para que não digam que não existimos, e aí temos gentes de diversas áreas, do interior e da capital. Por fim, a maioria são amigas e tenho a felicidade de poder ter trabalhado com a maioria.
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Vanessa Aragão
Vanessa Aragão
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