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TABUS, TRETAS E TROÇAS COM SÍLVIO TUDELA

Somos vítimas ou culpados pelo racismo que sofremos no futebol? Nossa história revela muito sobre isso; entenda

Futebol brasileiro é marcado pelo preconceito e elitismo desde sua origem

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Sílvio Tudela

30/05/2022 às 9:00 • Atualizada em 26/08/2022 às 18:16 - há XX semanas
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O assunto não saiu do noticiário em praticamente nenhum dia desse mês que acaba. Nas competições da Libertadores da América e da Copa Sul-Americana, atos de racismo fizeram mais burburinho que os próprios jogos em si. Parece que os torcedores perderam definitivamente o pudor de demonstrar tamanha estupidez e em diversos estádios espalhados pelo continente imitaram macacos e jogaram bananas a jogadores e torcedores brasileiros.

Preocupada com a repercussão negativa, a Conmebol começou a emitir comunicados de repúdio e campanhas educativas nas suas redes sociais, aplicou multas insignificantes de modestos US$ 30 mil e até admitiu a possibilidade de vir a punir certos clubes coniventes com atos racistas com jogos sem público e até uma hipotética perda de pontos e eliminação nas competições que organiza. Contudo não há, até o momento, previsão sobre quando essas penalidades serão colocadas em prática e tudo indica que elas aumentarão, por falta de punição, na fase das eliminatórias, que em breve terá início.

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Mas engana-se que esse comportamento é recente e somente agora vem sendo exposto pela mídia. E prova também que o Brasil nunca foi esse paraíso de respeito em repúdio ao racismo. O buraco é mais embaixo e tem origem na própria fundação do futebol nacional.

Voltemos à Idade Média, quando o povo se reunia nas ruelas dos burgos e disputava um jogo muito parecido com o futebol, mas em bandos e totalmente sem regras, o que gerava conflitos, casas saqueadas e destruição, além de muita violência física. Os considerados nobres da época, depois de muita rejeição, conseguiram reprimir a violência e acabaram por proibir definitivamente esse tipo de esporte em meados do Século XIX.


				
					Somos vítimas ou culpados pelo racismo que sofremos no futebol? Nossa história revela muito sobre isso; entenda
Foto: Acervo CBF / Divulgação

Mas o futebol, ou o que seria o seu parente mais próximo, acabou renascendo justamente no berço de um dos países que o proibiram. De forma subliminar, a elite britânica adicionou ao “esporte medieval” os princípios de civilidade e de cavalheirismo conferindo aos atletas o status de ‘gentlemen’. Foram criados regulamentos, uniformes e fixado em número de 11 o total de jogadores - número escolhido porque era este a formação das classes nos ‘colleges’ ingleses.

A grande virada ocorreu em 1893, quando rapazes ricos e nobres da Grã-Bretanha fundaram a Football Association, o futuro embrião da FIFA, órgão máximo de poder e controle do futebol mundial.

Um ano depois, em 1894, Charles Miller, um brasileiro filho de ingleses, que estudava na Europa, traz para o Brasil o esporte que se fortalecia na Inglaterra, embora existam indícios de que isto não corresponde à verdade, pois, já em 1872, marinheiros Ingleses foram vistos jogando futebol nas areias das praias cariocas. Apesar da dúvida cronológica, o paulista Charles Miller é considerado o introdutor do futebol no Brasil e o organizador do primeiro jogo oficial em gramado brasileiro, em outubro de 1894, entre a Companhia de Gás e a Ferrovia São Paulo Railway.

Nessa época e ainda nas duas primeiras décadas do Século XX, os trabalhadores e imigrantes, que não fossem ingleses, só podiam assistir aos jogos. Se quisessem disputar uma partida era preciso se reunir sob times de várzea de origem operária, pois a forte e elitizada personalidade britânica impedia e reprimia a popularização do futebol.

Por volta de 1915, tem início os movimentos operários com as greves que irromperam exigindo oito horas de expediente, melhores salários e condições de higiene. Sem poder se curvar às reivindicações e usando o poder de sua influência, os industriais, principalmente de São Paulo e do Rio de Janeiro, procuraram os municípios, os quais isentaram os impostos pagos pelos campos de futebol das indústrias que se dispunham a construir pequenos estádios. Ao mesmo tempo, a polícia deixa de reprimir as peladas de rua e os castigos aplicados aos estudantes, que fossem flagrados jogando futebol eram suspensos. A jovem elite industrial vai cedendo aos poucos e reedita a máxima de “pão e circo”, largamente usada no Império Romano a fim de acalmar a população.


				
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Com isso, os clubes operários vão sendo criados e se infiltram nas ligas de futebol já existentes, mas não sem resistência. Formam-se inacreditavelmente as associações para brancos e outras para negros, um verdadeiro apartheid no qual jogadores pretos são proibidos de praticar o esporte e chegam a ser obrigados, em alguns clubes como América-RJ e Fluminense, a passar pó de arroz no rosto e no corpo para não “chocarem” as nobres senhoritas da elite nacional que assistiam às partidas como se fossem jogos de tênis nos dias de hoje.

Houve casos de jogadores que foram obrigados a estagiar no banco de reservas por um ano sem direito a ingressar no quadro social do clube, pois somente sócios poderiam representar e jogar pelo time. Muitos só podiam entrar pela porta de serviço, e mesmo convocado para a Seleção Brasileira, não pode jogar graças a um boicote de outros jogadores que se recusavam a participar com “o negro sujo”, “crioulo nojento” e “preto sem vergonha” - palavras repetidas sem o menor pudor, inclusive pela imprensa da época.

Para dificultar ainda mais a entrada dos jogadores vindo de classes e origens mais pobres, foi instituída obrigatoriamente a súmula do jogo que exigia a assinatura de cada jogador ao fim de cada partida. Muitos atletas, ainda amadores e com baixa remuneração, ficavam desestimulados ou se afastavam porque eram analfabetos e acabavam voltando somente após aprender a ler e a escrever.

Para complicar o que já era repugnante, alguns autores de grande credibilidade nos meios intelectuais reforçavam a soberania da raça branca, como o escritor Monteiro Lobato, que fazia questão de reconhecer em seus textos “a supremacia das nações anglo-saxônicas”. José Lins do Rego assinou, em 1954, um artigo-relatório barrando jogadores negros para a Seleção Brasileira com a justificativa de que eles se borravam de medo quando enfrentavam os estrangeiros. As críticas e os ensaios racistas eram veiculados fartamente pela imprensa.

É de conhecimento público que os treinadores Flávio Costa (que atuou por longo período no Flamengo e na Seleção Brasileira) e Ibrahim Tabet (diretor de futebol) produziram um documento que afirmava que “os negros nas grandes competições se acovardavam”. Este relatório consta dos arquivos da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), nos autos de 1956.

Mesmo com toda ebulição racista da época, o futebol dos negros crescia e se mostrava como um dos pilares mais fortes e talentosos da Seleção Brasileira, o que fazia com que parte da própria imprensa reconhecesse o talento dos jogadores negros e a sua importância cada vez maior no cenário futebolístico nacional.

Após a histórica derrota frente ao Uruguai na Copa de 1950 e à Hungria no Mundial de 1954, já havia um movimento propondo a não convocação de jogadores negros para a Copa do Mundo da Suécia de 1958 e surgiu um relatório da CBD barrando a convocação de Zizinho por causa de suas reivindicações sobre o valor e a equiparação das gratificações entre os jogadores.

Apesar e todo esse caos, a conquista do primeiro campeonato mundial em 1958 e o sucesso dos jogadores negros como Pelé e Garrincha em gramados suecos amenizaram o racismo nos campos brasileiros, apesar de alguns fatos vergonhosos vistos ainda por alguns anos.

Todo esse contexto é crucial para entender como a história do racismo no futebol brasileiro é também estarrecedora e que está na origem do esporte que mais apaixona e orgulha os brasileiros pelas suas conquistas.

De todo modo, apesar de todo o horror que brasileiros vêm sofrendo com atos racistas pelo mundo, não podemos jamais dizer que somos santos.


				
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