Ao longo das duas horas de entrevista por telefone — em que esteve imóvel, no meio da sala de casa, em Salvador, único lugar em que o sinal do celular pegava —, o cantor e compositor Russo Passapusso usou a palavra “absurdo” pelo menos 20 vezes. As festas religiosas na Bahia são um absurdo, os pequenos sistemas de som dos carrinhos que vendem café no Pelourinho são absurdos, é absurda a música jamaicana e igualmente absurdos são os fãs que se abrem espontaneamente em roda ao final dos seus shows, que quando acontecem nas ruas, a céu aberto, em vez de nas casas de show fechadas, véi, são absurdos.
A absurdez do músico nascido Roosevelt Ribeiro de Carvalho, de 34 anos, natural de Feira de Santana, na Bahia, é mais mantra do que gíria. É realmente absurdo o que ele tem feito à frente de uma das bandas mais elogiadas de 2016, o BaianaSystem (responsável por um dos melhores shows do ano passado, segundo os críticos do GLOBO). Nas apresentações comandadas por ele, que misturam arrocha, hip-hop, samba do recôncavo, reggae e os graves do sound system jamaicano, ninguém fica parado. Ao som dos seus gritos de convocação (“Cavalo do cão!” é um deles, expressão que evoca o inseto com a picada mais dolorida do mundo; “Playsom!” é outro, título da música do grupo que virou vinheta do game Fifa 16), o público pula sem parar, como num transe coletivo. E só para quando o show vai se aproximando do final e o frenesi de hits como “Duas cidades” (nome do disco lançado em 2016), “Jah Jah revolta” e “Calamatraca” cessa e dá lugar a canções mais arrochadas, como “Amendoim, pão de mel”, transformando a roda aberta naturalmente pelos mais animados (“absurda”, repete ele) em uma pista de gafieira.
— O BaianaSystem é um quebra-cabeça. Cada um tem uma referência, a gente diz que são “quatro cabeças pensantes a serviço da arte dançante” — diz Russo, que começou a se apresentar com o BaianaSystem nas festas religiosas da capital. — Nas lavagens da Bahia, o sistema de som se parece muito com os da Jamaica: com o povo todo na rua, cada carrinho de café é um sistema de som, cada ambulante de cerveja, por toda parte se vê um sound system. E o sistema de som é uma das bases de pesquisa de onde começamos a entender a estrutura do reggae e do samba-reggae, que é uma das últimas grandes experimentações da música baiana. E o Baiana começa a formatar essas experimentações, relacionando com os ijexás, o frevo, o samba do recôncavo. A gente tenta reunir essas informações da diáspora.
Na última apresentação de Russo, no dia 2 de fevereiro, na Festa de Iemanjá, em Salvador, com o coletivo MiniStereo Público — além do BaianaSystem, o músico integra outros grupos de sound system, e também tem um trabalho solo lançado em 2014, o álbum “Paraíso da Miragem” —, um dos que cantaram no palco com ele foi o músico carioca BNegão, fã do baiano.
— Eu conheci o Russo como um dos MCs do MiniStereo Público, sound system fundamental da Bahia. Fui tocar lá várias vezes, e sempre me impressionei com o talento dos caras. Dentre todos eles, o Russo ainda era o que mais me chamava a atenção, por ter um estilo próprio. Para quem se emociona com originalidade, é uma felicidade muito grande. Isso foi o que me fez querer espalhar o nome dele aos quatro ventos — conta BNegão. — Russo tem voz marcante, rima ágil, um frontman daqueles que aparecem de tempos em tempos. Ele sempre traz alguma coisa interessante e contagiante, seja comandando 30 mil pessoas, como no carnaval da Bahia, ou num show underground, pra pouca gente. Está sempre aberto ao aprendizado, sempre em movimento.
“AQUI TEM UM CASO SÉRIO”
Foi BNegão quem apresentou Russo Passapusso ao músico paulistano Curumin, que se tornou seu produtor e gravou duas de suas canções (“Afoxoque” e “Passarinho”) no álbum “Arrocha”, de 2012.
— BNegão estava em São Paulo, e sei que ele é um cara que roda muito. Perguntei o que ele tinha visto nessas andanças. E aí ele me falou do Russo e me mostrou o primeiro disco do Baiana. Lembro que pensei: aqui tem um caso sério. Poucas vezes vi um artista com tanta força criativa tão poderosa como ele, é difícil ver mesmo. Depois nos conhecemos, ele foi me mandando as músicas que fazia. Ouvir Russo era como encontrar uma pedra preciosa. E sugeri gravarmos três músicas. Ali nascia o disco solo dele, “Paraíso da Miragem” — conta Curumin, admitindo que a forma como Russo aproxima melodia e letra, como se estivesse conversando, também influenciou sua maneira de compor. — É um menino que transpirou uma história de música que é sem igual no Brasil. E com a antena muito ligada. O Russo traz um poder de renovação muito grande da música brasileira. É uma renovação que carrega a tradição, não vem do nada, carrega no DNA toda a nossa história, galopada, samba duro, frevo, forró, tudo. E traz coisas novas, como essa pesquisa que ele faz com a música africana e a jamaicana.
O interesse de Russo pelos gêneros musicais que o cercavam começou com o rádio do pai, que trabalhava “na roça”, em pequenas plantações na cidade de Senhor do Bonfim, ao norte do estado. A mãe, funcionária do Banco do Nordeste, era transferida a toda hora e foi a responsável pela diáspora pessoal que levou Russo a experimentar outras cidades, até parar em Salvador, adolescente.
— Foi no interior que eu fui respirando essa música cantada nas esquinas, ou dos programas de rádio do meu pai, que era louco por rádio. Comecei a partir dessas lembranças, tanto da cantoria da viola, o forró, o carnaval de marchinha, de tacar maisena nos outros, ou já da coisa eletrônica que eu ouvia nas praças, aquela febre do teclado, que hoje é o arrocha. Eu toquei muito assim, houve um “Passapusso e seus teclados” no passado — diverte-se ele, rindo, mas ainda imóvel, para a ligação não cair. — Chegando a Salvador, vi toda aquela explosão, que já era axé, mas a presença do tradicional no axé era ainda muito forte. Estou falando de Margareth Menezes, de Gerônimo, de Lazzo Matumbi. É absurda a música “Eu sou negão”, de Gerônimo, eu ouvi aquilo e queria chorar, véi.
Na capital, Russo trabalhou em telemarketing, como vendedor de uma loja de discos de vinil. Mas foi demitido porque gastava o que ganhava em discos e não conseguia pagar aluguel. Participou de rádio comunitária, se casou, se separou, mergulhou nas pesquisas sobre sound systems jamaicanos, até integrar o BaianaSystem.
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Redação iBahia
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