A imagem mais emocionante do Carnaval de Salvador este ano aconteceu no Campo Grande, na terça-feira, dia 12 de fevereiro. Após 11 anos no comando e nos vocais da banda Eva, Saulo se despediu dos seus foliões com um choro convulsivo - e a imensa pipoca retribuiu com um carinho genuíno. Foi tão bonito quanto ver o Ilê Aiyê passar, uma maneira feliz de fechar um ciclo, pois não. Penso nisso no começo da tarde ensolarada e outonal no caminho ao encontro com Saulo, 35 anos, numa casa alugada em Itapuã onde ele ensaia com os seus músicos (os mesmo que o acompanhavam na banda Eva). Há mais de um mês, eles ensaiam para o show de gravação do primeiro DVD solo de Saulo, dias 6 (lotação já esgotada) e 7 de abril, na Concha Acústica do TCA. No primeiro dia, com participação especial da amiga Ivete Sangalo. No segundo, com Alexandre Carlo (Natiruts) e Davi Moraes. Depois de reverenciar a estátua do poeta Vinicius de Moraes (1913-1980), chego à casa nº 1 da Rua do Romance. É a primeira vez que eu e Saulo nos encontramos pessoalmente - as entrevistas anteriores foram por telefone. De sorriso aberto, camiseta, bermuda, gorro e chinelos Havaianas, Saulo bem poderia passar por um surfista de Amaralina, bairro onde morou parte da sua adolescência, mas na verdade estou diante da maior revelação masculina da cena axé music na era 2000. E a vibe é ótima.
De cara, ele lembra do título e da minha crítica sobre o último álbum (duplo) da banda Eva: CNRT - Conexão Nagô Rede Tambor (2012). “O nome da matéria era Nos Braços do Excesso. Você dizia que o CD 1 era bom, mas o CD 2 não, que havia canções demais (risos). Você tinha razão. Crítica boa eu gosto, guardo, nos faz refletir melhor”, diz. Existe a ideia de que um artista capaz de encantar a multidão em cima de um trio elétrico no gigantesco Carnaval baiano é, necessariamente, alguém extrovertido. Saulo Jorge Fernandes Navarro de Oliveira, nascido em 9 de setembro de 1977, em Barreiras, Bahia, desmente essa crença com sua timidez. Uma timidez que ele reverte em charme, mas que também pode dificultar sua relação com a exposição na mídia. Um conflito que ele tenta administrar, confessa, mas bem ao seu jeito. Definitivamente, Saulo não vende a alma para fazer sucesso. “Acho que a música é mais importante do que a minha exposição na mídia, ela vem em primeiro lugar. Sabe um griot? Me sinto meio assim, um servo da música. A música me escolheu desde bem cedo”, declara. Esperança reggae A prova inicial do romance desse griot - contador africano de histórias e costumes do seu povo, e que usa um instrumento para dar ritmo e musicalidade à narrativa - louro com a música é o raríssimo disco Falando de Esperança, de 1992. Vinil com apenas seis faixas - três de cada lado - e que pode ser encontrado no site Mercado Livre por R$ 160, Falando de Esperança foi gravado por Saulo aos 14 anos, sob a influência musical do tio Bosco. quando ele morava ainda em Barreiras. Aluno competente da história da música pop baiana com base percussiva, dos Novos Baianos e blocos afros a Luiz Caldas e Carlinhos Brown, Saulo se transformou num bom compositor, delicado e vibrante ao mesmo tempo, vide pérolas como Preta, Z de Zazá, Bahia com P e Isso É Bom. No obscuro disquinho regional de 92, porém, gravado em Recife e que alguns fãs do interior guardam como relíquia, Saulo já botava as manguinhas autorais de fora assinando a faixa Não Dá Pra Te Esquecer e cantando duas músicas com o termo reggae no título: Reggae de Zé Buriti e Passeio do Reggae. Sim, o gênero jamaicano por excelência também faz parte do caldeirão de influências do ‘parmalat’ que adora música de preto, incluindo o soul e o funk dos EUA. Com orgulho, conta que Edson Gomes, o maior reggaeman nordestino, compôs uma canção especialmente para ele gravar: Ginga do Reggae, uma das várias inéditas que vão estar no DVD. “Edson mandou um recado que queria falar comigo e eu fui encontrá-lo na Avenida Sete. Ele me disse, com aquele jeito dele, que tinha uma música pra mim. Fiquei todo assim, é uma honra, um presente que a música me dá. Presentes desse tipo não têm preço”, afirma. Trovador neo-hippie Outro orgulho foi a autorização conseguida com a cantora Adriana Calcanhotto para poder gravar o hit Esquadros: “Eu ando pelo mundo/ Prestando atenção em cores/ Que eu não sei o nome/ Cores de Almodóvar/ Cores de Frida Kahlo/ Cores...”. Com direção artística de Elísio Lopes Jr e direção de vídeo de Daniel dos Santos, o show do DVD - previsto para ser lançado no segundo semestre - será dividido em três partes: Raizes, explorando mais o lado percussivo; Trovador, mais focado nos versos, na poesia; e Da Massa, carnavalesco. Intérprete atípico surgido na cena axé music, já que não ‘grita’ e está mais próximo da escola serena da MPB joãogilbertiana, o pai de João, 15 anos, e Pedro, 2, é um homem apaixonado por poesia, leitor de gigantes como Augusto dos Anjos (1884-1914) e Fernando Pessoa (1883-1935). Algumas das suas canções, aliás, têm versos declamados de modo poético, melódico. “Não, quem dera eu tratasse a poesia como Maria Bethânia”, brinca, diante da comparação estabelecida por mim (e feita também em tom de brincadeira, claro). Poético e simples, o jeito de Saulo evoca o mestre Gilberto Gil na tarde quente. Ele baixa a cabeça e sorri diante da observação: “Eu copio Gil (risos). A grandeza e a humildade dele são espelhos pra mim”, afirma. Só aí percebo que ele traz o rosto de Gilberto Gil tatuado no braço direito. Deixo a Rua do Romance de volta ao jornal, enquanto Saulo caminha para dar um mergulho no mar de Itapuã.Matéria do jornalista Hagamenon Brito publicada no jornal Correio*
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