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NEM TE CONTO

Saulo fala sobre a influência da cultura negra em sua vida

"Acho que deveria ensinar candomblé na escola. Educação vai resolver todos os problemas", disse Saulo, entre outros assuntos da entrevista ao iBahia

• 20/11/2013 às 11:20 • Atualizada em 02/09/2022 às 1:16 - há XX semanas

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Um dos brancos mais negro da música baiana, o cantor Saulo Fernandes não esconde a influência da cultura africana em suas canções e até mesmo em seu dia a dia. Nesta quarta-feira (20), quando se celebra o Dia da Consciência Negra, o ex-vocalista da banda a Eva falou, em entrevista ao iBahia, falou sobre inserção da raiz africana em suas canções; a criação do personagem Zuma em sua carreira; se posicionou contra as cotas em universidades - por separar a população por cor- ; e disse achar um crime a intolerância religiosa praticada contra os negros. Confira na íntegra a entrevista exclusiva com o cantor:
Foto: Eliomar Santos/iBahia
iBahia - Como e quando começou o seu interesse pela cultura negra? Existiu alguma pessoa que lhe influenciou? Saulo - Nenel foi o primeiro negro que eu achei lindo. Ele foi meu mestre de capoeira. Eu fiz nove anos de capoeira em Amaralina, na Associação de Capoeira Filhos de Bimba, e eu o respeitava assim como o meu pai. Tanto que até hoje, já pai de família, eu me tremi todo quando encontrei com ele no trânsito, justamente por respeito que tenho. Na família de minha mãe eu tenho um tio que também é fundamental em minha vida, o Bosco. Não só por ser negro, mas porque ele falou disso (a cultura negra) o tempo inteiro. A primeira música que ouvi dele foi: "...o negro botou a cabeça no chão e rodou. Cuidado com o negro ele pode acertar em você. Vestido de palha esse negro é Obaluaê...". Eu era muito pequeno, tinha uns cinco, seis anos, e ouvia isso. Eu achava incrível. Já na adolescência você quer ser Bon Jovi, o cara do Extreme, o vocalista do Red Hot Chilli Peppers. Chato pra caralho e que não dá em nada. Essa influência chata americana que vem da rádio, lhe 'engole' e lhe atropela. Adulto, já em Salvador, convivendo com os meus amigos negros, compositores, músicos, é que se vê a força e influência diretamente em minha música. Eu sou formado como compositor pelos meus amigos músicos de sua maioria negra e que me falaram sobre tudo. Então a minha música fala dos meus amigos com quem convivo - Chicla, Magary, Leonardo... - e leva para minha vida, como pai de família. Eu falo isso para João hoje: 'filho, o que meu avô ensinou para o meu pai esqueça. Vai ser agora eu com você. As pessoas são iguais independente de qualquer coisa. Principalmente na Bahia, que você vai ter que ser preto de qualquer jeito, porque você convive em um lugar onde 80% da população é preta. Tem que haver um respeito e uma consciência.
"Esse é o baiano africano: tome-lhe descaso e tome-lhe sorriso de volta, lhe ofereço a outra face. Isso é a Bahia"
iBahia - A partir de qual momento você passou a transmitir isso em suas canções? Foi no disco 'Veja Alto Ouça Colorido' que você decidiu imprimir essa relação com a cultura negra, por ter um lado mais percussivo? Acho que sim. Eu estava vendo os discos de quando eu ainda estava no Eva e percebi que o 'Eva 25 anos' é o último CD em que eu apareço na capa. É muito coerente. Logo depois surge o Zuma no 'Veja Alto Ouça Colorido', a claquete em 'Lugar da Alegria', e agora esse novo álbum, em carreira solo, a boca de Aloisio (Menezes). Foi uma briga da porra, porque queriam colocar uma foto minha por causa da carreira solo. Eu falei que era melhor colocar Aloísio, que achei bonito e não gosto dessas coisas de aparecer. Aí vem a música 'Rua 15', que é quando eu começo a ter noção do que significa 'Ôba'. Foi aí que passei a escrever outras canções sobre esse assunto, como 'Agradecer', 'Oxente Balance', 'Tudo Certo na Bahia', 'Rua do Sossego'. Parece que ensaiei tudo para escrever 'Raiz de Todo Bem', que é a síntese ou o resumo de tudo.
Personagem Zuma criado por Saulo na época do Eva
Então o personagem Zuma surgiu para figurar e representar este momento em sua carreira? O Zuma veio para representar o Eva, que é um grupo tradicionalmente burguês, só que com a música o tempo inteiro coerente com o que está acontecendo. Sim, ele surgiu justamente para representar este momento. O que acontece na Bahia é que todo mundo é do axé, é baiano, mas pouca gente representa o seu lugar e mostra como ele é de fato. Você acredita que essa musicalidade de origem africana não combinava muito com o Eva e isso, de uma certa forma, reforçou a sua decisão em deixar a banda? Acho que não porque o Eva também tem uma tradição de ser uma banda percussiva. Foi assim com Ivete, que teve percussionistas maravilhosos. Não acho que houve essa discrepância, esse conflito. Naturalmente, organicamente eu vou traçando o meu lance, usando a força e a visibilidade que o Eva tem. Agora eu me sinto começando de novo, tendo que reafirmar coisas e aprender. Estou Paulinho Moska: 'tudo novo de novo' (risos). Veja também Aloisio Menezes: 'Gostaria de estar comemorando a vida e não lutando contra discriminação da raça' Mãe Iara luta pelo respeito ao candomblé e preservação da Pedra de Xangô A cultura negra ainda sofre muito preconceito, até mesmo aqui na Bahia. Qual a função que os artistas devem desempenhar para tentar reduzir esse problema social? A música e a arte funcionam como agentes transformadores, libertadores. A música, como 'Raiz de Todo Bem', bate no útero até mesmo dos homens, que não têm útero (risos). Mexe com a autoestima. Fui ao Pelourinho cantar com a Orquestra Rumpilezz e, quando estava indo embora, um cara parou do meu lado e falou assim: 'África iô iô'. Eu tomei um susto na hora e falei 'meu Deus o cara tá me chamando de África iô iô. Olha pra minha cor. Tem alguma música aí envolvida'. Ele não sabia falar muito porque era canadense. Então uma música desse tipo traz tudo de volta. Até hoje eu tenho uma pasta com CDs de axé antigo e quando eu ouço '...retirante ruralista...'. Eu penso: 'que força isso tem'. Olodum, as coisas antigas. A música, sobretudo aqui, mexe com o valor e a consciência das pessoas. Faz com que Negra Jhô seja como ela é. Mesmo sendo sofrida, anda com o sorriso no rosto e esperançosa. Estava conversando com Netinho e ele falou que Dadá foi visitar ele. Ela disse que qualquer coisa que ele precisasse poderia contar com ela. Esse é o baiano africano: tome-lhe descaso e tome-lhe sorriso de volta, lhe ofereço a outra face. Isso é a Bahia.
"Quando se investe em um ser humano, só tem resultado bom"
Você acredita que a implementação de políticas públicas contribuiria para a diminuição do preconceito? Também. Políticas públicas de inclusão, de conscientização, de tudo. Estou no projeto que se chama Boca de Brasa, que é a prova de que coisas organizadas e simples funcionam. Visitamos os bairros de Salvador, como Plataforma, Boca do Rio, e acendemos pessoas talentosíssimas e em sua maioria negra, galera do gueto. Você chega a um lugar desse e dá vontade de colocar essas pessoas em cena, porque só tem gente talentosa que participa das oficinas de grafite, produção de teatro, capitação de recurso, enfim. Isso é a prova de que dá pra mudar. Eu boto fé no que está acontecendo com Neto (prefeito de Salvador). Tem um cara que se chama Guilherme Bellintani (secretário de Desenvolvimento, Cultura e Turismo de Salvador), que eu estou botando a maior fé. Acho que ele vai mexer em algumas coisas e eu estou otimista como sempre. Estou sacando uma mudança que vai rolar na Bahia. Qual a sua posição sobre as cotas nas universidades? Essas coisas são bem delicadas. Já tive época de ser contra, já tive época de ser a favor...talvez eu seja mais contra do que a favor. A favor porque é a forma de adiantar o lado mesmo, mas contra porque separa. Eu prefiro ficar com o contra porque eu não gosto de separação. É por isso que precisamos conviver com guerra, desigualdade e ver as pessoas se matando. Porque somos separados. Sou mais contra do que a favor.
Foto: Robson Mendes/Jornal Correio*
Mas você não acha que a falta de oportunidades, sendo na educação, saúde, inclusão social, não influencia nisso? Educação é fundamental. Tudo começa com a educação. Se o sistema público fosse melhor, as coisas estariam muito mudadas. Quando se investe em um ser humano, só tem resultado bom. Ao contrário disso, só se tem resultado ruim. Falta isso: educação. Bota as gravatas sujas onde devem ficar, sem semiaberto, fechadíssimo. Eu acho até que prisão é pouco. Deveria pegar os bens desses caras e dizer: 'você roubou pra caralho e agora vai ser pobre, fudido e vai ter que começar tudo de novo'. Aí vai acabar a pose, vai acabar aquele punho fechado, que não adianta porra nenhuma. Salve Barbosa (presidente do Supremo Tribunal Federal). Por você ter muitos amigos negros, principalmente aqui na Bahia, você percebe ou já observou algum tipo de preconceito com eles no seu dia a dia?Percebi sim. Tenho um amigo que se chama Chicla e ele é do Parque Sonoro. Fomos dar canja em um bar, onde um amigo nosso estava tocando. Como estávamos juntos, ele foi bem tratado. Quando saímos do local ele falou: 'esse cara do bar já me esculachou. Não queria meu som lá. Só porque eu estou com você o cara ficou babando meu ovo'. Então existe sim. Seria irresponsável se eu dissesse que não. Mas acredito que estamos caminhando para uma consciência de igualdade. Houve um avanço muito grande nessa questão. A prova disso é o que Barbosa tem feito. Mas precisa de muita coisa ainda. A cultura negra sempre está associada ao candomblé, umbanda e outras religiões de origem africana. Qual a sua opinião sobre a intolerância religiosa? Acho um crime. Acho que isso que a SUCOM (Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Município) faz, de fechar e perseguir os terreiros, por exemplo, é um crime. Não um crime pessoal, mas um crime cultural, o que é pior. Porque quando você corta a cultura, corta-se conhecimento, passado, corta tudo. Mesmo não sendo candomblecista, eu tenho uma admiração pela riqueza daquilo, pelas roupas, de procurar saber quem escreveu essa teoria, quem pensou sobre esse assunto ainda lá na África e tudo ter durado tanto tempo. Acho que deveria ensinar candomblé na escola. Educação vai resolver todos os problemas. *Em nota enviada ao iBahia na tarde desta quinta-feira (21), a Sucom refuta as declarações de que o órgão municipal fecha e persegue terreiros de candomblé. Por meio do comunicado, eles também informam que "as ações da Sucom firmam-se na laicidade e no princípio constitucional da igualdade. Características, aliás, que norteiam todas as políticas da atual gestão da Prefeitura, que está, por exemplo, desenvolvendo projetos que visam a legalização e a regularização fundiária de terreiros em Salvador - trabalho que conta com o apoio dos técnicos da Sucom. Vários outros projetos e ações também fazem parte das políticas de reparação social, encampadas pela atual administração pública municipal" .Assista ao clipe da música 'Raiz de Todo Bem', citada por Saulo na entrevista: [youtube C7JzWChGwhA]

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