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Olimpíada traz um novo olhar sobre o mito do atleta super-herói

Após a saída de Biles da disputa por equipes, ontem, especialistas debatem a importância da atenção à saúde mental

Redação iBahia • 28/07/2021 às 6:45 • Atualizada em 31/08/2022 às 15:51 - há XX semanas

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Oito dias. Esse foi o tempo para que o sorriso cativante de Simone Biles se apagasse em Tóquio. No domingo, a americana ainda tentou esconder a decepção após a classificatória, com erros incomuns para ela. Ontem, não teve jeito. O rosto tenso e a respiração pesada, antes mesmo de apresentar um salto aquém do esperado, eram o prenúncio do abalo emocional que viria à tona e resultaria em sua retirada da equipe, que ficou com a prata, atrás das russas. A presença da melhor ginasta do mundo nas outras cinco finais tornou-se uma incógnita.

Não há qualquer dúvida, porém, em relação ao que tirou a alegria de Biles. Ontem, num primeiro momento, cogitou-se ser problema físico, mas a jovem de 24 anos não se furtou de dizer que já não tem a mesma confiança em si e abordou os problemas da sua saúde mental abertamente.

— Assim que eu piso no tablado, sou só eu e a minha cabeça, lidando com demônios. Tenho que fazer o que é certo para mim, me concentrar na minha saúde mental e não prejudicar minha saúde e meu bem-estar. Há vida além da ginástica — contou a americana. — Não confio tanto em mim como antes. E não sei se é a idade. Fico um pouco mais nervosa quando pratico a ginástica agora. Sinto que também não estou me divertindo tanto.

Os questionamentos em relação à ginástica não são de hoje e foram agravados pela pandemia. Assim que recebeu a ligação do irmão lhe avisando do adiamento da Olimpíada, Biles caiu no choro. Ela não queria passar mais um ano treinando para uma competição na qual já havia ganhado quase tudo. Foi no silêncio do isolamento, no Texas, que ela se perguntou o porquê de estar fazendo aquilo. Mas, no fim, decidiu continuar, como contou à “Sports Illustrated”.

Mas a escolha de Biles ontem vem da maturidade de quem reconhece os próprios limites. Ao contrário de outros esportes, competir com medo e sem confiança na ginástica pode significar lesões sérias. Como ela disse, “apesar da grandiosidade de um evento como os Jogos, no fim do dia, as ginastas só querem sair do ginásio, mas não levadas em uma maca”.

A atitude também joga luz numa questão que tem se tornado mais evidente nos últimos anos: atletas de alto rendimento não são super-heróis — e é preciso que o mundo e eles próprios aceitem.

— Imagine do que essa ginasta já abdicou, coisas cotidianas como baladas, encontros com amigos, relacionamentos, para chegar até ali. Esses ambientes de alta performance são muito rígidos. Talvez agora ela, que já ganhou muitas medalhas, queira ocupar o pódio da própria vida. A pandemia pode ter provocado essa reflexão — afirmou Maria Francisco Mauro, mestre em psiquiatria pela UFRJ.

O psicólogo e presidente da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas (FBIC), Renato Caminha, completa:

— A vida como atleta é curta, e eles têm que estar preparados para o fim do ciclo. Equipes que vão para as olimpíadas precisam de acompanhamento psicológico.

Nesta equação — da necessidade de resultados e a superexposição — em que lugar fica a saúde mental do esportista? Foi o que a tenista japonesa Naomi Osaka expôs ao abandonar Roland Garros após se recusar a dar entrevistas coletivas, obrigatórias pela organização. A atleta de 23 anos alegou que sofre de depressão e não se sentia confortável para tal exposição. À época, Osaka, que foi eliminada ontem de Tóquio, teve o apoio de ícones como Serena Williams e Lewis Hamilton. O heptacampeão reclamou da falta de apoio das entidades a jovens atletas para lidarem com a pressão emocional.

— Acho fundamental que esse debate tenha sido fomentado por uma atleta como a Osaka: jovem, com alta visibilidade, campeã em sua modalidade, o que lhe confere a possibilidade de se tornar menos refém da estrutura mercadológica e midiática — diz a pesquisadora Leda Costa, do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte da Uerj.

As narrativas esportivas também respondem pelo processo de mitificação dos atletas. Transformados em heróis, eles se tornam seres vistos como infalíveis. Não aguentar o peso da cobrança, então, é sinal de fraqueza.

— Precisamos reelaborar nossas noções de heroísmo. Os parâmetros da figura atlética heroica estão desgastados e talvez não sejam mais compatíveis com a complexidade de um mundo como o nosso — argumenta Leda Costa.

Desmistificar essa ideia tem sido o papel da psicologia do esporte. O tema ainda é espinhoso. Poucos atletas se expõem. Alguns depoimentos surgem ao fim da carreira, como aconteceu com Michael Phelps, que revelou ter pensado em suicídio após Londres-2012. A judoca brasileira Rafaela Silva, ouro no Rio-2016, e o ginasta Diego Hypólito, medalhista de bronze, também já contaram suas experiências de crises depressivas.

No futebol, o tabu permeia o assunto. Atualmente quase todos os grandes clubes brasileiros possuem uma superestrutura de desenvolvimento físico e de performance, mas o lado psicológico não recebe o mesmo investimento. Na Série A, por exemplo, pouco mais de 30% contam com psicólogos em seus departamentos. A seleção brasileira masculina também não tem acompanhamento, e a feminina passou a ter no ano passado a pedido da técnica Pia Sundhage.

— A pressão sempre existiu, mas está mais cruel o julgamento instantâneo de tantos meios diferentes. Se não estiver com suas valências equilibradas, a cobrança externa vai ser muito mais sentida — diz a psicóloga Maíra Ruas, que trabalha as duplas Evandro e Bruno Schmidt e Ana Patrícia e Rebecca, do vôlei de praia.

O que também precisa mudar, na opinião da psicóloga e terapeuta cognitivo comportamental Claudia Melo, é a cultura que enxerga o atleta como profissional na totalidade do tempo. Segundo ela, essa cobrança — que vem não só do público, mas até mesmo dos treinadores e dos pais — promove o adoecimento dos jovens.

— Parece que eles precisam estar o tempo todo dentro do personagem e isso traz um peso muito grande. Esses atletas não têm uma escuta acolhedora na família ou dos técnicos, mas sim uma voz de comando que determina que sejam sempre fortes — comenta a psicóloga: — É importante, então, que façam um acompanhamento profissional. E é interessante que procurem um terapeuta em que confiem para contar suas questões. Embora haja o sigilo, muitos atletas não se sentem confortáveis para falar com psicólogos relacionados ao time.

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