Janlei não tinha nem dois anos de idade completos e seu pai, Jocimar, já alinhava seu pé para os primeiros chutes tortos. É que o hoje porteiro de um prédio na Barra sonhava em ser jogador de futebol na adolescência, mas a mãe tinha qualquer outro plano para o filho, menos ser boleiro. Logo dona Jandira, prima carnal de Boquinha, meia do Vitória na década de 50. "Eu jogava no time daqui do bairro e, um dia, fui convidado para jogar o Intermunicipal pela seleção da cidade de Acupe. Eu tinha 17 anos, mas minhã mãe não deixou eu viajar", lamenta.
A lembrança do passado que não virou futuro ainda lhe frustra o olhar, mirado para o chão da pequena sala da casa nº 23, rua Marco Polo, bairro de Santa Cruz, onde Jocimar sempre morou. Sonho transferido para o filho, foi nesta sala que Janlei, ainda de fraldas e chupeta recém-abandonada, conheceu uma bola. Aos sete anos, dava chutes no Parque da Cidade. Depois vieram os uniformes, chuteiras, rotina de treinos, sim, de treinos, e a certeza do pai: "eu sei que Janlei vai ser jogador de futebol. Ele está sendo preparado desde criança. Acredito muito em Deus e no talento dele".
As coisas mudaram muito. Mesmo no aperto, com o salário de R$ 1,100, Jocimar enxugou as contas da família, composta pela mulher, dona de casa, e um casal de filhos, e comprou um carro usado, ano 2005. A função dele é, sobretudo, levar e trazer Janlei da escolinha de futebol, cujos treinos acontecem no campo de areia batida na Boca do Rio, perto da praia. Vida de rei, para quem um dia foi o mais humilde dos plebeus. "Eu andava da Santa Cruz até a Barra para economizar no dinheiro do ônibus e poder pagar a escolinha dele", relembra Jocimar.
Tem mais. Quando Janlei ainda treinava no Galícia, ali na Avenida Santiago, perto do Iguatemi, pai e filho vinham andando para casa. - Pai? A depender do jeito de falar, essa era a senha para Jocimar colocar o filho, cansado, nos ombros e carregá-lo até em casa, não sem antes subir uma ladeira interminável já em Santa Cruz. Juntando camisas, bolas, chuteiras e mensalidades, Jocimar calcula ter gastado mais de R$ 10 mil ao longo dos anos. "Nunca pensei em desistir, nem me arrependi do que fiz. Eu tenha certeza que lá na frente eu vou ser recompensado por todo esse esforço".
Dona Marlene já pirou muito, mas hoje tá de boa
Marlene, a mãe de Janlei, não esquenta mais com os planos do marido. "Era um inferno quando eles jogavam bola dentro de casa. Quebraram até uma janela. Hoje não ligo mais. É o sonho dele, né?", diz. Mas ela não dispensa a mão de ferro na hora das prioridades. O filho ouviu poucas e boas depois que foi reprovado na escola em 2010. Em 2011, repete a sexta série. "Perdi o ano porque filava aula para jogar bola", justifica-se o garoto. Em outro episódio, sumiu de casa e, horas depois, com seus pais já em prantos, apareceu com uma garrafa de 2 litros de refrigerante. "Foi meu prêmio por ser campeão no baba perto daqui". Janlei hoje tem 13 anos e virou atacante. Em janeiro passado, viajou pela primeira vez para competir. Foi disputar a Copa Sul-Bahia na cidade de Teixeira de Freitas com o time da escolinha, mas nem passou da primeira fase. Isso é o de menos. "Caí no choro quando Janlei me falou da viagem. Paguei R$ 1,5 mil de despesa com gosto", diz Jocimar, prestes a fazer 41 anos. Janlei, mesmo de gestos e perguntas inocentes, comprou a convicção do pai. "Eu quero ser jogador para dar uma casa para meus pais. Um carro também, uma BMW".
O professor Ronaldo, dono da escolinha onde Janlei treina, está aí para comprovar as opiniões de Jocimar. "Ele é um bom jogador, titular do time da categoria dele. Janlei evoluiu muito nos últimos dois meses e está mais disciplinado. Ele foi muito bem na competição em Teixeira de Freitas. Só precisa se soltar um pouco mais", conta. A sorte, no entanto, abandonou o menino quando precisou apresentar seu futebol para as câmeras. Um pênalti perdido e uma leve torção no tornozelo em uma competição rápida disputada sábado à tarde, no campo da Boca do Rio. Calma, garoto. Os craques também têm seus dias inglórios. Recentemente Janlei cortou o cabelo no estilo Neymar, mas seu ídolo no futebol é Cristiano Ronaldo. "Gosto muito dos dribles dele", diz o torcedor do Vitória, assim como o pai. Além da seleção brasileira, claro, Jocimar sonha em um dia ver o filho com a camisa do Chelsea, clube da primeira divisão da Inglaterra. "É um time de pegada". O filho vai na contramão. "Não quero o Chelsea, não, pai. Quero jogar no Real Madrid. Imagino todo dia a torcida gritando meu nome quando eu entrar em campo", sonha.
Primos também estão na mesma onda Isaac, 14 anos, e Matheus, 13, são filhos de Jamílton, 32, irmão de Jocimar. A história é a mesma: a fixação pelo sonho de jogar futebol, os treinos desde os dois anos de idade, a sala, o Parque da Cidade, os sacrifícios. Eles moram no mesmo
sobrado em Santa Cruz e a diferença é que ainda treinam na escolinha do Galícia. Seguro nas palavras, Matheus, torcedor do Bahia, diz que quer ser volante e conta como atravessou fronteiras. "Sonhei uma vez que estava jogando uma partida no Milan ao lado de Ronaldinho Gaúcho e Kaká. Chutei a parede do quarto e acordei com o pé doendo muito". Isaac é tímido, calado e monossílabo. Perfil de zagueiro que não brinca em campo. Justamente o que ele quer ser. Até o físico, apesar da idade, dá prévias de que Isaac, também torcedor do Bahia, terá um porte robusto. Mas nada de confusão. "Nunca briguei em campo, não gosto. Vou sempre na bola, sem machucar ninguém". Jamílton, pai dos meninos, trabalha como agente de limpeza do Shopping Iguatemi e também se mete nas peneiras do Galícia, onde faz as vezes do árbitro. "Eu e meu irmão treinamos eles desde pequeno, mas, hoje, são eles mesmos que querem seguir na carreira. A gente não cobra nada, só ajuda", explica.