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Mary del Priore lança
"A Carne e o Sangue" |
A viagem à província da Bahia, em fevereiro de 1826, foi um pouco demais. Para apaziguar o buliçoso espírito liberal dos baianos, o imperador D.Pedro I (1798-1834) resolveu vir pessoalmente. Na comitiva, trouxe bem juntinhas a esposa, a imperatriz Leopoldina (1797-1826), e a amante Domitila, a Marquesa de Santos (1797-1867).
O escândalo teve ecos na corte carioca, nas europeias e aqui mesmo, pois a cidade recebeu o séquito com pasquins colados nos muros e portas das igrejas, repudiando a vinda da favorita, ou seja, Domitila. Mais tarde, Lopoldina resumiria a viagem como “extremamente desagradável”.
O passeio escancarou a existência do triângulo amoroso mais conhecido de nossa história, que ganhou um retrato à altura de sua repercussão. No livro A Carne e o Sangue (Rocco/R$ 34,50/272 páginas), a historiadora Mary del Priore, 59 anos, traz as histórias da alcova para o primeiro plano, mostrando como elas influíram na vida do 1º Império. Domingo, às 14h, a autora lança o trabalho e bate-papo com o público na livraria Cultura do Salvador Shopping.
Encanto - Ao misturar os dramas individuais com a história do país - o que já vem fazendo em vários livros - Mary diz que pretende recuperar o lado romanesco desse tipo de literatura. “Quero contar e encantar”, afirma a autora, que assume a preocupação com as descrições e em refazer os cenários e ruídos do período. Com os romancistas, se inspira para fazer frases curtas e períodos charmosos.
Por isso, a leitura de A Carne e o Sangue segue fluida, prendendo a atenção do leitor até o fim. Mas que ninguém se engane. As fontes primárias - algumas inéditas - e extensa bibliografia consultada estão lá no final da publicação, para não deixar dúvidas que se trata de um trabalho de pesquisa de uma sócia titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa de História.
No conjunto inédito, Mary diz ter achado uma “incrível coleção de cartas de Leopoldina” e os bilhetes entre D.Pedro e Domitila, que comprovam a relação “sem hirearquias e de igual para igual do casal de amantes”.
Em cartas endereçadas a pessoas de sua intimidade na Europa, a imperatriz falava abertamente da solidão em que se encontrava. Lamentava o clima esquisito, os hábitos estravagantes e sentia falta do teatro e das festas. Mas o que mais a incomodava era a pouca atenção do marido.
Filha de Francisco I, rei da Áustria, a moça desembarcou no Rio em 1817 selando a importante aliança entre os Orléans e Bragança e os Habsburgo. Aos 20 anos, ela chegou para defender os princípios católicos e da monarquia absolutista. Segundo os cronistas, era pequena, gordinha e nem feia nem bonita.
Empolgada com o mundo novo que se descortinava, anotou: “Se estar apaixonada significa não ter outra coisa na cabeça a não ser o Brasil e Dom Pedro, então estou. Acho-o tão lindo quanto um Adônis”. Mas o encanto durou pouco.
Em nove anos, Leopoldina teve nove filhos, o que tornou sua vida um martírio. Ela também não dava conta do grande apetite sexual do marido, famoso pelas amantes e filhos bastardos. No total, ele teve 23 rebentos. “Apesar dela ser uma mulher culta, não entendeu a informalidade do país. Não se fez querida pela corte, embora o povo a adorasse”, afirma Mary.
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Titília - Em 1822, em meio à crise política que elevou o Brasil de Colônia a Império, D. Pedro conheceu ou reencontrou - os biógrafos divergem - a paulista Domitila de Castro e Melo, 25 anos. Foi paixão imediata.
No mesmo ano, Domitila se mudou para o Rio de Janeiro, acompanhada da extensa família. Entre eles, a irmã Maria Benedita, com quem D.Pedro deu um “mal passo” e teve um filho. Segundo a autora, Domitila era filha da tradicional família paulista, rica e muito influente.
Casada aos 15 anos, conseguiu se divorciar - algo raro à época - com a intervenção do imperador. Todas as descrições convergem para uma mulher deslumbrante: alta, corpo perfeito, pele acetinada e sem marcas, uma massa de cabelos escuros e brilhantes e uma boca “bem mobiliada” de dentes...
D. Pedro logo fez a distinção entre sua proprietária (Leopoldina) e sua preferida (Domitila). Ou, ainda, entre amor de matrimônio e o amor de devoção. Nas cartas, a chamava carinhosamente de Titília. E assinava como Demonão e Fogo Foguinho. Sem nenhum pudor, chegava mesmo a desenhar um pênis ereto nas missivas apaixonadas.
No posto de amante oficial, Domitila deitou e rolou. O imperador, que se assumiu um “servo”, não de cansava de lhe cobrir de presentes, como um palacete ao lado da residência imperial de São Cristóvão, a fim de facilitar os encontros calientes.
Realeza - Cada vez mais queixosa e melancólica, Leopoldina suportava tudo com discrição. Mas duas atitudes do marido acenderam o sinal vermelho: dar o tílulo de Marquesa de Santos a Domitila, enfiando-lhe na realeza; depois nomeá-la primeira-dama do palácio, o que garantia à amante lugar de honra ao lado da imperatriz Leopoldina em cerimônias e viagens, como na visita à Bahia.
Nas relações íntimas, o ano de 1826 começara mal e só se agravava. D.Pedro obrigou o bispo a reconhecer oficialmente sua filha com Domitila, Isabel Maria. Através de decreto, tornou-a Duquesa de Goiás e fez com que a pequena passasse a conviver com os rebentos reais.
No plano público, a guerra nas províncias do Sul levou D. Pedro para o Rio Grande. Por isso ele não conseguiu chegar a tempo no Rio no dia 11 de dezembro para o funeral de Leopoldina, que sofrera um aborto. No leito, ela desabafou: “Eles me mataram”.
Ao contrário do que se possa pensar, a morte da imperatriz não tornou a vida da amante mais tranquila. Sua casa chegou a ser apedrejada pelo povo, que a culpava pela morte de Leopoldina.
Muito mais por conveniência política do que remorsos ou qualquer outra coisa, D.Pedro resolveu atender aos que insistiam que ele tinha que se livrar de Domitila para seguir no poder. Foi o que fez - depois de um polpuldo acordo financeiro com a amante - para limpar sua barra e conseguir uma nova noiva na realeza europeia. No final, pesou o sangue azul. Era o que faltava a Domitila.