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Baiana mantém tradição do acarajé viva no RJ: 'De onde vim'

Neta de yalorixá e baiana de acarajé, Tatiana Anjos vive fora da Bahia há mais de 20 anos, mas não deixa o legado da família

Alan Oliveira • 18/03/2023 às 8:01 • Atualizada em 18/03/2023 às 8:20

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Tatiana Anjos mora fora da Bahia há mais de 20 anos, mas nunca deixou de lado a terra natal, a cultura e nem o legado da família. Neta de uma yalorixá que também atuou por décadas como baiana de acarajé, a soteropolitana tem mantido viva no Rio de Janeiro a tradição da venda do quitute, que é tão importante para os baianos e para a história de resistência do povo negro. Nos últimos anos, além de ser fonte de renda, o ofício, que é patrimônio imaterial cultural do Brasil, também se tornou a conexão com o que ela representa.

"O fazer é bonito. Como agora uma pessoa de Candomblé, que nasceu na Bahia, com avó baiana, e que agora tenho o entendimento do que tudo isso significa, por mais que seja muito trabalhoso, mas, por entender a historicidade de tudo isso, eu acho muito importante. Eu não tenho uma pele retinta, mas eu me considero preta, porque vim dessa miscigenação e porque nasci no lugar mais preto do país inteiro. Eu costumo dizer que o Pelourinho é um terreiro a céu aberto. Eu acho importante manter a história, contar de onde eu vim", disse em entrevista ao Preta Bahia desta semana. 

Quando chegou no Rio, Tatiana já conciliava outros trabalhos e o estudo com a venda do acarajé, para conseguir manter os custos de morar na cidade. Ela atuava em um dos dois pontos que a avó tinha na capital carioca na época. Os dois irmãos dela já viviam na cidade há um tempo e também trabalhavam juntos com a atividade. Porém, os anos se passaram e a baiana acabou seguindo outros caminhos. Agora também terapeuta, ela vive no distrito de Lumiar, em Nova Friburgo, interior do estado.

"Eu vim realmente querendo viver outras coisas. Sabe quando você nasce em um lugar e acha que está no lugar errado? Hoje eu tenho o maior orgulho de onde eu nasci, de todas as histórias, de tudo que eu vivi. Hoje eu acho isso muito rico. Mas eu vim querendo alcançar outras coisas. E o que me impulsionou a essa coragem foi o término de um relacionamento", contou.

"Sentia outras necessidades, que a realidade que eu vivia eu entendia que não iria conseguir alcançar. Ainda que no processo de sacerdócio de minha avó, ela sempre ter conseguido suprir as nossas necessidades e de tantos outros. Mas era uma realidade difícil, como continua sendo para tantos outros", completou.

Inicialmente, Tatiana se mantinha na região com os frutos da terapia. A venda de acarajé voltou a ser fonte de renda durante a pandemia de Covid-19, quando vários setores tiveram o funcionamento interferido por causa das medidas de controle da doença. "Na pandemia, o meu trabalho tem muitas massagens corporais. Esse trabalho ficou suspenso, porque tinha toque".

Foi aí que ela teve a ideia de montar o tabuleiro na praça do distrito, com a ajuda da ex-esposa do irmão dela. Também baiana de acarajé, ela auxiliou na compra e transporte dos ingredientes, que não são achados com facilidade fora da Bahia, como o azeite de dendê e o camarão seco. Foi assim até que as atividades foram sendo retomadas, e Tatiana tomou a decisão de fazer o preparo do acarajé uma vez no mês, em uma espécie de ritual de preservação da cultura. 

"Mantenho uma vez por mês para manter a cultura, porque aqui não tem. As pessoas que vem de fora tem conhecimento de acarajé e morador que vem de fora para morar aqui gosta. Como aqui é um lugar chamado de a nova Suíça, a Suíça brasileira, um lugar de muitos descendentes de europeus, colonizadores, eu achei importante manter a cultura para contar a nossa verdadeira história. Aqui, segundo contam, foi um lugar que teve muitos quilombos, um lugar de gente preta mesmo, mas que com o processo de colonização sumiram". 

A venda do acarajé se tornou um evento. A ideia de Tatiana é que, além do consumo do acarajé, as pessoas reunidas vivenciem também a música e outras características da cultura negra. A ideia nasceu e se fortaleceu com uma parceria com um amigo. "A gente faz o acarajé como entrada, mas a gente também insere um prato principal, que é alguma comida de santo ou algum prato de origem africana. Então, a gente vende o evento e não só o acarajé. A pessoa vai para ter a experiência, deixar fluir, celebrar junto".

A amizade começou no Candomblé. Tatiana detalhou que, mesmo vivenciando de perto a religião no terreiro que era liderado pela avó no bairro da Boca do Rio, na capital baiana, ela só foi iniciada no Rio de Janeiro, onde conheceu o amigo. Antes disso, na adolescência, chegou a se afastar dessa vivência por causa do preconceito que encontrava fora de casa. 

"Hoje eu sou iniciada, mas a gente sabe que, sobretudo nessa época, era uma religião demonizada, então, eu ouvia coisas na rua, na escola. E aí quando eu fiquei adolescente eu dei uma afastada de toda essa cultura. Era uma coisa que eu achava que não tinha afinidade. Mas aí eu vim para o Rio, vários processos na vida que me chamaram de volta, e hoje eu sou iniciada e sou feliz por ter esse resgate, esse reencontro".

"Antes de abrir meu coração, quando eu entendi orixá e Candomblé, eu entendi que eu já vivia, só que com outros nomes e outras formas. Eu buscava estar conectada com a natureza, estar na natureza, cutuar na natureza, já entendia meu corpo como templo...", completou.

Durante a entrevista, a baiana relembrou a infância com a avó e os filhos de santo dela na capital baiana. "A gente ficava ali, correndo e brincando no terreiro, sem necessariamente participar das festividades como membro. E essa vivência de terreiro me deu a possibilidade de ter várias mães. Então, enquanto minha avó estava nos processos dela, a gente estava ali sendo criado por mães e filhos de santo também"

Nascida e criada no Pelourinho, Tatiana conta que teve uma vida humilde em Salvador. Ela conviveu mais com a família paterna, depois que os pais se separaram na infância. Inicialmente, ela morava com a avó, o pai e os irmão. Depois, passou a viver também com a madrasta, a irmã da madrasta e os filhos delas, em um apartamento do Centro Histórico. A baiana detalhou que chegaram a ser nove pessoas vivendo em um único imóvel de um quarto e sala.

"Era uma galera em um apartamento muito pequenininho de um quarto e sala. E a gente dormia embaixo da mesa. Tirava a cadeira, colocava para cima, para ter um lugar para dormir".

Atualmente, Tatiana confessou que não sente vontade de voltar a morar exclusivamente em Salvador, porque se encontrou em Lumiar. Mas não esconde o amor pela cidade e o desejo de poder manter uma rotina de presença nos dois lugares. Inclusive, ela descreve a capital baiana como o primeiro terreiro.

"Eu sinto muita saudade, cada vez mais disso. Até porque eu vivo em um lugar que eu adoro, que não tem violência, mas que chove muito também, e aí justamente nesses momentos que eu fico querendo me teletransportar. Mas também por morar em um lugar assim eu fico querendo ir e voltar. Aqui está o meu terreiro, aqui tem a casa que eu consegui montar e estou morando, minha rede de apoio... recomeçar cansa. Então, eu quero poder ir, curtir, ficar, ver os amigos e poder voltar sempre".

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