“Os homem (sic) balearam foi três morador (sic) lá pro lado da Serra Verde. A ideia do Coroa é pra fechar tudo. Toque de recolher, tocar fogo em tudo na desgraça”. A mensagem completa, em que aparecem duas vozes se dirigindo a moradores do Nordeste de Amaralina, Santa Cruz e Vale das Pedrinhas, dura 19 segundos. A rotina nos locais, no entanto, mudou por dois dias.
Ônibus incendiado no Vale das Pedrinhas após toque de recolher (Foto: Luciano Junior) |
O áudio foi divulgado no último dia 1º por meio do aplicativo de celular WhatsApp e, segundo a Polícia Militar, a ordem partiu de um traficante conhecido como Chorrão ou Coroa, que nunca foi preso.
O uso do aplicativo para espalhar o terror virou febre, até pela facilidade: basta pressionar um ícone na tela e falar. Só em novembro, pelo menos 16 áreas de Salvador foram citadas em áudios anunciando toques de recolher supostamente ordenados por traficantes.
Apesar de a Secretaria da Segurança Pública (SSP) possuir um Grupo Especializado de Repressão aos Crimes por Meios Eletrônicos (GME), a equipe nunca foi solicitada para esse tipo de investigação. A informação é do delegado Charles Leão, que coordena o grupo.
Investigação
Apesar disso, a SSP garante que sempre que os áudios chegam ao conhecimento dos investigadores são investigados. Primeiro a PM vai ao local averiguar se a ameaça existe e reforça o policiamento. Depois, uma equipe de inteligência vai a campo, à paisana, para identificar a origem da ameaça.
No entanto, a pasta não sabe informar quantas pessoas foram presas por disseminar mensagens. “Como nós somos da área, vamos fazer averiguações, mas existe um grupo especializado para investigar esse tipo de crime, que é o de Meio Eletrônicos”, diz o investigador Jorge Fiúza, da 4ª Delegacia (São Caetano). Lá, ninguém foi preso.
Um delegado disse, sob anonimato, que o GME é chamado quando a delegacia local precisa de apoio especializado. “A gente faz uma investigação por ciclos, um processo relativamente demorado. Eu vou na minha fonte e pergunto de quem ele recebeu até chegar na origem. Às vezes, cai num telefone que está dentro do presídio. Às vezes é um laranja”, comentou.
Colégio Estadual D. Leonor Calmon vazio pela tarde. Alunos da unidade não tiveram aulas depois de boato de toque de recolher se espalhar (Foto: Robson Mendes) |
Clima de tensão Em geral, as mensagens começam a circular após alguma situação de tensão. No Nordeste, após uma troca de tiros que deixou uma mulher morta e três crianças feridas, o comércio baixou as portes, 13 escolas e uma faculdade suspenderam as aulas e até postos de saúde fecharam mais cedo. Os ônibus pararam de circular e dois deles foram incendiados após os passageiros serem retirados dos veículos.
O mesmo tipo de ameaça surtiu efeito - e fechou escolas, postos de saúde e o comércio - em dez bairros (veja gráfico acima) no mês passado e, em dezembro, no Nordeste de Amaralina, Santa Cruz e Vale das Pedrinhas. Foram 250 mil moradores que tiveram a rotina completamente modificada em um mês.
Se, nesse caso, a ordem partiu de um traficante, a Polícia Civil assegura que não é sempre assim. Para o delegado Charles Leão, do GME, a maioria é trote. “Antigamente, a pessoa comprava uma ficha, ia para o orelhão e passava trote para os Bombeiros, para a Polícia. O áudio pelo WhatsApp é apenas uma forma mais evoluída de fazer a mesma coisa”, aponta.
E é crime, na medida em que interrompe serviços essenciais, como o funcionamento de escolas e postos de saúde (veja ao lado). Para o presidente da Associação Brasileira de Internet (Abranet), Eduardo Parajo, o crime é o mesmo cometido na “vida real”, mas utilizando outro meio. “A pessoa usa o WhatsApp para falar de toque de recolher, mas ela podia usar um alto falante, mandar SMS, ligar para as casas das pessoas. Então, se isso é considerado um crime, ele só mudou o meio que usa para cometer”, explica.
Único identificadoNa semana passada, um homem foi preso em Cajazeiras depois de gravar e espalhar áudios divulgando um suposto toque de recolher. Segundo a titular da 13ª Delegacia (Cajazeiras), Olveranda Oliveira, o homem não está preso porque não houve flagrante.
“Identificamos uma pessoa, interrogamos e eu enviei o celular para a perícia. Esse indivíduo é um morador de uma localidade daqui que achou engraçadinho o que o marginal estava fazendo e gravou e divulgou um áudio também. Ele se apresentou”, conta.
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Para o advogado especialista em Direito Penal Brenno Cavalcanti, a ausência de punição é de cunho prático: “A dificuldade para apurar esse tipo de crime é identificar o autor. Essas mensagens se disseminam muito rápido e às vezes só pela voz não consegue conhecer”, diz. Ameaça é 'crime grave e dá cadeia', diz especialista O ato de espalhar ameaças de toque de recolher, seja através do WhatsApp ou por outros meios, é considerado crime de acordo com o Código Penal Brasileiro. E, segundo o advogado especialista em direito Penal, Brenno Cavalcanti, se enquadra em mais de um artigo. “É crime e pode se configurar como constrangimento ilegal, que é um crime mais genérico, mas que tem situações mais específicas como, por exemplo, o constrangimento de impedir as pessoas de trabalhar, quando você impede que o comércio seja aberto”, afirma. A mesma prática pode se enquadrar como incitação ou apologia ao crime e, por fim, como atentado contra a segurança de serviço de utilidade pública, conforme o artigo 265 do Código Penal Brasileiro. Nesse caso, se aplica quando a ameaça acaba fechando escolas e postos de saúde, por exemplo. “É um crime grave, inclusive. Uma escola, um posto de saúde é serviço de utilidade pública e, quando esse ato afeta esses serviços, prevê pena de reclusão de um a cinco anos”, afirma o delegado Charles Leão, do Grupo Especializado de Repressão aos Crimes por Meios Eletrônicos (GME). Pelo constrangimento ilegal, conforme o artigo 146 do Código Penal, a pena varia de três meses a um ano, ou multa. Pela incitação ao crime, artigo 286, cabe detenção de três a seis meses ou multa. Já pela apologia ao crime ou criminoso, a pena também varia de três a seis meses de detenção e multa. Discurso tem relação com realidade Embora a Polícia Civil e a Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) afirmem que a maioria dos áudios anunciando toques de recolher seja trote, o professor Carlos Costa Gomes, coordenador do Observatório de Segurança Pública da Bahia, da Unifacs, rejeita essa hipótese. “Eu não vejo essa possibilidade rotineira. Lógico que pode acontecer, mas acho muito improvável, até porque essa pessoa vai estar colocando a própria vida em risco. Se ele fala que tem que fechar o comércio porque um traficante falou, o traficante vai mandar matar ele”, argumenta. Em muitos áudios, os interlocutores falam em acerto de contas e ordenam que comércio, escolas e postos de saúde fechem as portas. Para o professor, esse tipo de ameaça é feito porque já faz parte do imaginário das comunidades. “A pessoa não ia inventar um discurso que não tivesse relação com a realidade dela.” Mensagens vão para banco de áudios do DPT Conseguir um mandado judicial para quebra de sigilo telefônico pode levar tempo. Mas, segundo a assessoria da Secretaria da Segurança Pública (SSP-BA), o serviço de inteligência consegue chegar com certa facilidade a alguns dos autores, porque, a depender do bairro citado no áudio, já se sabe quem é o traficante. Apesar disso, o serviço de inteligência chama a atenção para o problema do alcance das mensagens. Às vezes, um áudio direcionado para um bairro acaba chegando a outro e mudando a rotina de quem mora bem longe da ameaça. Por isso, a SSP-BA explica que todos os áudios recebidos pela polícia vão parar em um banco de áudios do Departamento de Polícia Técnica (DPT), para que possam ser comparados.Veja também:
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