Com problemas de hérnia de disco e úlcera, seu Jarbas*, 67 anos, está internado em uma das muitas macas amontoadas nos corredores do Hospital Geral Roberto Santos (HGRS) e precisa da ajuda de uma familiar para se higienizar no banheiro da unidade, que fica próximo à segunda porta da Emergência Adulto. No domingo, quando a parente levou seu Jarbas para o banho, teve uma surpresa. “Tinha um paciente morto!”, contou Ana*, a parente do idoso. Do lado esquerdo da entrada, sobre uma maca, havia um cadáver, coberto com um lençol descartável. E essa não foi a única vez que seu Jarbas teve que se limpar com o corpo como companhia. “Hoje (ontem) de manhã foi a mesma coisa”, desabafou Ana*. O sanitário é usado por muitos dos pacientes internados improvisadamente nos corredores. O aposentado Pedro Santos Mota, 61, viu a mesma cena ao levar a irmã, uma dona de casa com um tumor na cabeça, para tomar banho.
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Corpo ficou ao lado de espaço para tomar banho (Foto: Arquivo Pessoal) |
“Isso, claro, põe em risco o próprio paciente, a depender da condição em que a pessoa veio a falecer. Além do desrespeito com o próprio indivíduo que faleceu”, pontuou o presidente do Sindicato dos Médicos da Bahia (Sindimed), Francisco Magalhães. Apesar de o sindicato ter feito já uma série de denúncias sobre a situação do hospital, recebeu o relato com surpresa. A assessoria do Hospital Roberto Santos confirmou que havia um cadáver no banheiro, mas alegou que a situação foi pontual, por conta de uma lotação no necrotério.
No chãoApesar da cena assustadora, a presença de um cadáver no banheiro da Emergência é o menor dos problemas dos pacientes e de seus acompanhantes no Hospital Geral Roberto Santos. “É um verdadeiro caos”, resume Sara Mota*, sobrinha de Pedro Mota, que passa o dia na unidade com a mãe. A mulher já fez todos os exames, mas aguarda uma cirurgia para retirar um tumor na cabeça, conforme recomendação do próprio médico do hospital. “Eu cheguei aqui ontem (domingo) 8h, fui conseguir uma cadeira para minha mãe às 15h. Depois, ela perdeu a cadeira e teve que jogar um lençol e dormir no chão. Ela tem a bacia fraturada, são oito pinos na bacia”, disse Sara*. Ela se reveza com o tio para cuidar da mãe, já que não há lugar para acompanhantes no hospital. “Eu disse para o médico que a gente espera, porque não tem jeito, mas espera com dignidade”, exigiu.
Superlotação Mesmo tendo que ficar no corredor, quem consegue uma maca já está bem mais confortável do que os outros, que lutam por uma poltrona ou até mesmo por uma cadeira plástica. É tanta gente pelos corredores que, questionada sobre quantos seriam, a Secretaria Estadual da Saúde (Sesab) respondeu: “Não temos como lhe dizer quantos pacientes estão no corredor, mesmo porque isso muda a todo momento. O mais importante é que a unidade não rejeita paciente, atende a todos”. A nota diz ainda que “o secretário Fábio Vilas-Boas está atento e providenciando solucionar os problemas da unidade”. Em janeiro deste ano, a Sesab admitiu que 93 leitos do hospital estavam bloqueados por problemas estruturais e déficit de pessoal. A Sesab não respondeu se a situação foi sanada. Os acompanhantes dos pacientes contam que, nesse cenário, uma ida ao banheiro ou uma conversa com um médico significa, muitas vezes, perder o lugar. “O pobre que chega aqui sem um acompanhante morre”, afirma Ana Souza*. Ex-presidente e hoje membro do Sindicato dos Trabalhadores em Saúde do Estado da Bahia (Sindsaúde), Inalba Fontenelle destaca que o amontoado de pacientes aumenta os riscos para quem está internado. “Não tem privacidade. O profissional não pode fazer todos os tipos de procedimentos, corre o risco de alguém passar e tombar. Além disso, nem todos os corredores têm tubo de oxigenação. Tem também um risco de infecção”, disse. A falta de espaço para tanta gente se soma à carência de profissionais. Há acompanhantes que relatam precisar ir buscar a medicação, já que não há gente suficiente para ministrá-la. “Não tem luva, demora pra chegar, tem remédio que não tem na casa. A máquina da ressonância está quebrada, faltam profissionais para determinadas especialidades”, queixou-se João Silva*. Em nota, o HGRS nega que faltem medicamentos. Sobre a superlotação, o comunicado informa que toda a estrutura da unidade, maior hospital público do Norte e Nordeste, não é suficiente. “Registramos superlotação na Emergência Adulto devido à demanda altíssima decorrente, entre outros fatores, da falta de uma assistência básica eficiente, e pelo fato de o HGRS funcionar em regime de ‘porta aberta’, sem recusar qualquer paciente, e todos eles sejam atendidos, embora o perfil deste hospital seja o de emergência para casos de alta complexidade”.Questionada, a Sesab não respondeu por que as macas estão nessa situação. No entanto, ao mesmo tempo em que se queixam das condições desumanas decorrentes da falta de estrutura, são unânimes os elogios à equipe médica por parte de quem acompanha pacientes no Roberto Santos. “Os profissionais são humanos, a maioria tenta fazer o que pode pelos pacientes. Eles se dedicam. Mas, infelizmente, não têm recursos suficientes para cuidar dos que estão ali”, diz João Silva, que acompanha a mãe no Roberto Santos.
Investigação O Ministério Público da Bahia (MP-BA) informou que vai investigar as denúncias feitas pelos acompanhantes de pacientes do HGRS. A promotora Patrícia Medrado, do Grupo de Atuação na Defesa do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa (Gepam), aconselhou que os parentes das vítimas encaminhem ao MP as imagens registradas. “A área de Saúde deve analisar tudo isso. O Dr. Rogério Queiroz (coordenador de Saúde do MP) vai apurar essas denúncias”, disse. A promotora informou ainda que a responsabilidade do corpo no banheiro será apurada e os responsáveis pela situação podem ser afastados do cargo em uma ação de improbidade.
*Nomes fictícios |
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Foto: Reprodução |
Cadeiras da sala de espera também viram leitos(por Alexandre Lyrio) Entrar na emergência do Hospital Roberto Santos é dar de cara com um cenário desolador. Gemidos, mau cheiro e sujeira misturam-se a uma grande dose de revolta. Pacientes são atendidos em um local superlotado e desorganizado. A cena clássica das macas nos corredores já nem assusta tanto. No setor de emergência, são improvisadas cadeiras de sala de espera. Ontem, ao conseguir acessar o setor mais crítico da unidade, o CORREIO encontrou situações como as vividas pelos três personagens em destaque ao lado. Mas há outras. Gente como Josenita Vieira Coelho, 41 anos, vai completar uma semana amanhã que está dormindo sentada na emergência à espera de uma colonoscopia. Aliás, muitos que ali estão vivem essa situação. Eles são colocados em uma estrutura com cadeiras de plástico lado a lado e ali é como se estivessem em macas. As cadeiras deixaram de ser assentos para parentes visitantes e se transformaram em leitos para pacientes. “Cheguei aqui quarta-feira passada com um sangramento abdominal e me mandaram sentar. Não levantei mais. Aqui me encosto e cochilo à noite. Alguém precisa fazer alguma coisa”, desespera-se Josenita. Na sala que deveria ser de medicação, encontram-se pacientes necessitando de cirurgia urgente para amputações, gente acometida de AVC precisando de UTI e pessoas que vivem uma via-crúcis à espera de um simples raio-X. Diabética, hipertensa e renal crônica, a aposentada Dinalva Andrade, 64 anos, até conseguiu se acomodar melhor. Foi colocada em uma poltrona reclinável. Com um abscesso na perna direita, está há cinco dias aguardando a realização de um ultrassom para fazer uma cirurgia. “O abscesso está cada vez maior e ela precisa fazer uma cirurgia urgente”, diz a filha de Dinalva, a jornalista Raquela Lacerda. O aposentado Genivaldo Ferreira, 65 anos, que precisa amputar o dedo do pé direito, está sentado há dois dias na cadeira de plástico que virou leito. “Dormir aqui é um sofrimento retado”, reclama.
João Batista: cinco noites dormindo numa cadeira“Seu João, há quantos dias o senhor está dormindo nessa cadeira?”, perguntamos ao lavrador João Alexandrino Batista, 54 anos. “Olha, sentado aqui eu estou tem cinco dias. Mas dormir mesmo ninguém dorme”, respondeu, com olhos fundos e fisionomia abatida. Seu João contou que precisa de uma cirurgia para tirar uma pedra dos rins. “Meu menino trouxe um travesseiro e foi o que melhorou mais um pouco. Mas não tava conseguindo nem sentar de dor. Tem hora que trava tudo na coluna”, lamentou. Morador de Santa Luz, sem urinar todos esses dias, além da dor da pedra ainda tem a companhia de uma sonda que lhe incomoda toda hora. “O pessoal tá pelejando pra achar uma maca. Mas sempre chega alguém mais grave. O que tá salvando é o remédio pra dor”, diz seu João, com as pernas inchadas. “O senhor vai fazer o quê? O senhor é funcionário daqui?”, perguntou esperançoso à reportagem.
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João Alexandrino (Foto: Alexandre Lyrio) |
Seu Aurino: três dias na cadeira e aguarda cirurgiaO aposentado Aurino dos Santos, 75 anos, sofre de fecaloma. Com o endurecimento das fezes, tem 25 dias que não defeca. Os medicamentos não resolveram a situação. Precisa de uma cirurgia urgente para retirada das excretas do intestino. Mesmo assim, passou três noites dormindo sentado em uma cadeira plástica dentro da Emergência do Roberto Santos. De forma desumana, espera vaga para a cirurgia. Somente ontem, conseguiu uma poltrona onde pôde relaxar. A filha, Selma Marinho dos Santos, 29 anos, está revoltada. “Meu pai passou três dias sentado. Olha o inchaço nas pernas. Isso é de ficar sentado. Agora tá na poltrona. Melhor que nada, né?”, diz.
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Aposentado Aurino espera no hospital (Foto: Alexandre Lyrio) |
Adeilson: chamado para exame, mas funcionário sumiuA situação de Adeilson Silva Oliveira, 36 anos, é preocupante. Diabético e com anemia profunda, precisa de cirurgia para amputar o pé esquerdo. Depois de ficar dois meses internado em Conceição de Coité, chegou no Roberto Santos na sexta-feira. Está há três dias esperando a realização de um raio-x pré-cirúrgico. Segundo sua filha, ele chegou a ser chamado para fazer o exame, mas não havia quem o colocasse na cadeira de rodas ou em uma maca. “Chamaram ele para o raio-x e o rapaz ficou de vir pegar. Aí ele sumiu e não apareceu mais ninguém. Eu sozinha não tenho condições de carregar ele e botar na cadeira de rodas”, disse a mulher, que preferiu não se identificar e diz estar perdendo as esperanças. “Os médicos nem encostam aqui. O único que veio disse que tinha que esperar porque tem umas 20 pessoas na frente. Aí complica, né?”.
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Adeilton espera por atendimento (Foto: Alexandre Lyrio) |