|
---|
Se a morte é o momento em que faltam as palavras, no Cemitério Quinta dos Lázaros, na Baixa de Quintas, faltam palavras, cova e até coveiro. A situação do único cemitério administrado pelo governo do estado anda tão crítica que alguns funcionários confirmaram ontem ao CORREIO que estão aceitando o pagamento por fora das famílias para realizarem sepultamentos. Com salários atrasados há três meses, em operação-padrão como forma de protesto, coveiros admitem que recebem gratificações. “É necessidade. A gente tem que comer, né?”, disse um deles, sem se identificar. O Sindicato dos Trabalhadores em Limpeza da Bahia (Sindilimp) confirma o fato e sai em defesa da categoria. “Questão de desespero. O pessoal acaba aceitando R$ 30, R$ 40 ou R$ 50”. Terceirizados O pagamento de um dos meses de salários atrasados na terça-feira atenuou a situação, mas não impediu que os funcionários continuassem a operação- padrão. Ontem, apenas quatro enterros foram realizados. Normalmente, são dez por dia. Terceirizados da empresa White Limp Serviços de Manutenção, os coveiros denunciam que chegaram a ficar quatro meses sem receber e três anos sem tirar férias. Na terça-feira, eles cruzaram os braços durante a manhã inteira e só realizaram sepultamentos depois que uma das parcelas foi depositada. Hoje, caso a dívida não seja quitada na íntegra, eles prometem parar de vez. O Sindilimp denuncia ainda a falta de equipamentos. Coveiros desempenham a atividade sem luvas, botas e máscaras. “Eles têm contatos com pedaços de corpos humanos, muitos de pessoas que morreram contaminadas”, diz o diretor executivo do sindicato, Édson Araújo. Na verdade, falta até farda. Os que utilizam o fardamento têm as roupasrasgadas. “No nosso trabalho, a roupa não aguenta”, disse outro coveiro, apenas com a calça da empresa. Da cintura para cima, ele usava um abadá do Tiete Vips. Um total de dez coveiros trabalha na Quinta, sendo que seis são contratados pela White Limp. Os outros são do estado. Com a paralisação dos terceirizados, os da Secretaria da Saúde do estado da Bahia (Sesab) se diziam sobrecarregados. “Tô aqui que não aguento minhas juntas”. A terceirizada White Limp atua na Quinta dos Lázaros desde 2008. Contratada via licitação, é responsável pela coleta de resíduos e contratação dos funcionários que realizam os sepultamentos. A direção do cemitério culpa a empresa pelo não pagamento dos coveiros e disse que nada pode fazer. “A empresa provou que podia participar da licitação. O que eu posso fazer?”, indagou o administrador, Manolo Dominguez, que acredita na futura quebra do contrato. “Se eles continuarem assim vão cair fora. Mas isso não depende de mim e não acontece de uma hora pra outra”, afirmou. O diretor da empresa, José Carlos Cabral, insistiu ontem que não deve mais nada aos coveiros. “Já paguei tudo. Não devo um centavo”, disse ele, antes de disparar ameaças veladas e tentativas de comprar a reportagem com alguns “agrados”. “Vem aqui tomar uma cerveja comigo. Conheço a direção toda da Rede Bahia. Seu chefe é meu amigo. Quer vir ao meu camarote no Carnaval? É tudo de graça”, ofereceu Cabral, dono do bar Caranguejo do Farol, na Barra.
Degradação: ossos, mato e mau cheiroA situação de penúria dos coveiros da Quinta dos Lázaros combina direitinho com a degradação do cemitério. O lugar onde estão enterrados ícones como Carlos Mariguela e o rábula Cosme de Farias está caindo aos pedaços. Com uma área de 52.500 m², o número reduzido de funcionários não consegue dar conta de quase nada. O mato toma a maior parte das covas rasas, ultrapassa a altura das cruzes no chão e até de alguns túmulos. “Isso aí é criatório de cobra”, ironizou um dos funcionários. Sozinho, sem luvas, ele iniciava o processo de capinagem que parecia interminável. O mau cheiro já é quase uma característica da Quinta. Com covas mal cavadas, túmulos abertos e destruídos, o fedor incomoda quem passa. “Tá assim porque chegou defunto novo”, observou outro funcionário. O CORREIO flagrou uma montanha de sacos cheios de ossos humanos para incineração, sem local adequado para serem guardados. Deixados em uma das galerias, por onde passam visitantes, exalavam mau cheiro. “Onde eu enterro dez por dia, tenho que tirar dez”, justificou o administrador, Manolo Dominguez.