som da percussão é incomparável. Qualquer ouvido baiano consegue identificá-lo. E quando a batucada é feita à moda local, aí fica mais fácil de reconhecer, seja por aqui ou além-mar, até mesmo quando os rataplans nascem de mãos estrangeiras. O grupo Batalá é um projeto percussivo que nasceu em solo francês e que reúne milhares de pessoas ao redor do mundo. E nesta quinta-feira (11), junto com outras 50 entidades, blocos e agremiações, o Batalá vai desfilar até a Colina Sagrada e testar sua popularidade no tradicional cortejo da Lavagem do Bonfim.
São os grupos, inclusive, que dão trilha sonora e melhoram o aspecto visual da dura caminhada de 8 km até o Bonfim. Mas manifestações culturais, que alegram e distraem os fiéis da Conceição da Praia até a Basílica do Bonfim, não surgem junto com a maior manifestação religiosa e cultural do estado, como conta o jornalista e pesquisador Nelson Cadena. Na verdade, elas começam a aparecer na Lavagem de forma tímida, no século 19. Hoje, lamenta ele, não tem tanto protagonismo assim, “estão desaparecendo a cada ano”.
Uma pena mesmo, afinal, sem a música e sem o lado profano - que permite reabastecer a fé até com uma gelosa -, a caminhada seria uma verdadeira penitência.
Mal vistos
Os grupos, sobretudo aqueles de capoeira e de roda de samba, formados, em sua grande maioria, por descendentes de negros escravizados, não se atreviam a se meter na festa que, à época, tinha um maior controle da irmandade. O olhar provinciano daquela gente, sobretudo os mais ricos, reprovava qualquer manifestação considerada de "mau gosto", como eram rotulados o samba de roda e a capoeira.
Sem poder bater o pandeiro na basílica, aqueles que apreciavam o som ficavam por ali, nas imediações da igreja, como no Largo do Papagaio, na Ribeira, esquentando o instrumento para, enfim, na sexta-feira Gorda, fazer o batuque comer no centro.
As modinhas, por sua vez, tinham aceitação total. O som romântico e lento do gênero embalava os festejos 'oficiais'. Geralmente, os cantores se apresentavam no coreto da praça da basílica, contratados por aqueles mais endinheirados.
Os músicos dos Ternos de Reis também eram bem recebidos pelo povo na península itapagipana. Vinham da Lapinha e chegavam no Bonfim contratados para fazer a romaria, indo de casa em casa. Só deixavam a região depois de três dias, emendavam com as outras festas, como a festa de Nossa Senhora da Guia e de São Gonçalo do Amarante.
Um século depois, já na década de 1950, após a realização do I Congresso Brasileiro de Folclore, os grupos passaram a ser vistos com outros olhos e aqueles considerados folclóricos passaram a ter acesso livre às escadarias. "Passaram a dar um maior valor à cultura de origem africana e isso liberou o acesso do pessoal que era reprimido em participar dos festejos", completa o pesquisador.
Os grupos de hoje
Hoje, apesar de não serem as atrações principais da festa, as manifestações culturais ainda dão sentido à Lavagem. Faz parte de um todo, junto com as figuras das baianas, as beatas fervorosas e os figurões mais interessados na farra.
"Você não vai para festa para ficar esperando os grupos passar, como acontece, por exemplo, na festa da Independência da Bahia. É uma manifestação, digamos, de exaltação popular. As pessoas vão para curtir, porque gostam disso, porque têm aquela coisa mística de ir até a Colina a pé", pontua Nelson Cadena.
E tem até quem cruze o oceano só para sentir de perto aquilo que nem mesmo nós baianos, às vezes, conseguimos explicar: a relação entre a devoção e a esbórnia. Aqueles de terras distantes, que já são familiarizados de alguma forma com a Bahia, chegam para beber da fonte. Foi assim com o grupo Batalá, formado só por mulheres batuqueiras.
Essa trupe que lança mão da percussão baiana, por exemplo, surgiu na década de 1980. Para ser preciso, no Parc de la Villette, em Paris, durante um sábado de tédio do baiano Giba Gonçalves, 54 anos. Ele chegou em terras parisienses de mala e cuia para fazer o delírio dos franceses com o ritmo que embalou durante anos o Velho Continente.
Giba, que é dançarino e percussionista, fez parte da banda de lambada Kaoma - ficou no grupo por dois anos. Depois de sair da Kaoma, seus dias – principalmente os sábados, dia de agenda lotada –, já não eram os mesmos. Foi aí que veio a ideia de criar um outro projeto.
"Foi com um patrocínio de uma empresa de aviação que eu consegui que os instrumentos como timbal e tambor chegassem à França. Era uma ação que eu tive que promover, mas, depois, passei a ensinar os franceses a tocar os instrumentos. Foi assim que surgiu o grupo [Batalá]", conta Giba.
Ao longo do tempo, pessoas de outras nacionalidades também foram se juntando ao grupo e levando a ideia para além dos domínios parisienses. Atualmente, o Batalá existe em 16 países. Essa mistura explica o porquê de o som dos tambores ser acompanhado por gaitas de fole na última apresentação que o Batalá fez na Barra, na terça-feira (8). Veja abaixo.
Homenagem a PM morto
O carro do mecânico Luis Carlos Silva, 65, é o único que tem a autorização da Empresa Salvador Turismo (Saltur) para seguir do Comércio até o Bonfim. Não à toa, afinal, não é um simples carro. É um possante construído por ele mesmo, revestido, no dia da festa, com palha. E como antiguidade é posto, os 20 anos de presença na festa continuam a contar nesta quinta.
Revistir o carro de palha, a propósito, foi uma tática que o mecânico encontrou para chegar até a Colina sem cansar as pernas. "Foi só para poder chegar lá de carro, porque um carro normal é um carro, e um carro de palha é uma atração", explica Luis Carlos, que também vai em grupo: entram a família e um sem-número de fiéis por onde passa.
Em 2018, ele desfila para homenagear o filho, que desfilou ao seu lado por anos. "Vou colocar uma foto para homenagear o Fortuna", completa o mecânico. Fabiano Fortuna e Silva, 40, era subtenente da Polícia Militar e morreu em agosto do ano passado, depois de ser baleado durante um assalto no estacionamento do Shopping Paralela.
Outros blocos
Também participa da festa, de acordo com a Saltur, minitrios elétricos montados em carrinhos de cafezinho, cortejo político, músicos aglomerados em estruturas circenses, blocos carnavalescos em versões reduzidas e agrupamentos formados por representantes de associações de bairro.
O bloco afro Muzenza inicia o desfile às 9h, com cerca de mil integrantes. Participam da festa também blocos como o Rixô Elétrico, Galera do Davi, Mãe Nalva Com Família e Fé, Jegue Trançado, Peixinho Elétrico, Bonfim Diet, Bloco Los Patifes, Balaio de Gato, Fala Meu Loro, Okanbi e Ilê Ayiê.
Regras
Ainda conforme a Saltur, só serão permitidos carros de som do tipo Kombi e pequenas caminhonetes que emitam até 110 decibéis durante as apresentações. É proibida a participação de trios. O local de concentração e de partida das entidades participantes da festa é na Avenida Contorno, na altura do restaurante Amado, mediante a apresentação do comprovante de inscrição aos prepostos da prefeitura.
A saída será por ordem de chegada, logo após o cortejo oficial, às 9h, tendo como limite o horário de 15h. Após o cortejo, os carros inscritos não poderão permanecer em qualquer local do circuito, ficando sujeitos a reboque e multa.
Ao longo do percurso, agentes da Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (Sedur) farão varreduras para coibir publicidade não autorizada durante os festejos, venda de bebidas em garrafas de vidro, alimentos em espetos ou a utilização de potenciais armas brancas para manipulação de comida, além da ocupação irregular de calçadas e marquises.
Cortejo político
Eles estão sempre lá, não importa o partido. Todos querem sempre estar perto do povo - a não ser que a popularidade esteja muito em baixa. Os políticos fazem questão de seguir todo o cortejo, "na onze", até a Colina.
Mas isso é hoje, porque na década de 1940 eles evitavam a fadiga. Faziam parte do trajeto, de acordo com o pesquisador Nelson Cadena, de carro. Contudo, antes da Lavagem, se preocupavam em estampar nos jornais a presença no evento religioso.
As primeiras-damas também mostravam humildade. Sem descer do salto e em bons trajes, simulavam uma lavagem nas escadarias da basílica. "Elas pegavam emprestada a vassoura de alguém e, com meio litro de água, fingiam lavar as escadas", destaca Cadena. Tudo para render fotos nas capas dos principais periódicos.
Quando resolviam ser mais discretos, colocavam seus anúncios nos quadros de algumas bicicletas dos fiéis que seguiam fazendo propaganda gratuita pela Avenida Dendezeiros. De lá pra cá, não mudou muito coisa, mas o evento religioso também foi dando espaço para os protestos e críticas políticas.
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Redação iBahia
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