Trabalhador rural da zona canavieira de Alagoas, em outubro de 2006
Foto: Cícero R. C. Omena/Flickr/cc
Por Wagner Moura*
"A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil". Essa é a frase mais célebre do livro Minha formação, do abolicionista brasileiro Joaquim Nabuco. Esse livro foi escrito no final do século 19, portanto pouco mais de uma década depois de abolida a escravidão no Brasil. Em 1888, o Brasil foi o último país ocidental a livrar-se oficialmente do trabalho forçado.
A escravidão tornou-se mesmo parte fundamental da alma do nosso país. Creio que mesmo Nabuco, que se antecipou a Gilberto Freire nas reflexões sobre a influência do trabalho escravo na cultura brasileira, talvez não supusesse que no ano de 2015 suas palavras ainda fariam tanto sentido.
A população negra brasileira ainda é a grande maioria nos bolsões de pobreza e a sofrer violência policial. Recentemente, a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro resolveu impedir que ônibus vindos das periferias da cidade chegassem às praias dos bairros nobres, sob pretexto de evitar assaltos. Jovens negros eram, sem qualquer justificativa, retirados dos ônibus. Ainda seguimos com plantas de apartamentos com “quartos de empregada”, quartinhos escuros e sem janelas perto da cozinha.
As empregadas domésticas brasileiras, em sua grande maioria mulheres negras, somente há alguns anos foram incorporadas ao mundo das leis trabalhistas. Muitas delas ainda moram nas casas de seus patrões, trabalhando da hora que acordam até a hora de dormir.
A quantidade de pessoas negras nas universidades é consideravelmente inferior à de brancos. Homens e mulheres negras ganham salários menores do que os brancos. As políticas afirmativas enfrentam grande resistência no meio político e entre a classe alta brasileira, também em sua grande maioria formados por brancos. A maior parte dos pobres de nosso país tem a pele escura. Ou seja, a escravidão dos séculos 18 e 19 está evidentemente refletida na pobreza de afro-descendentes no século 21.
Mas essa é uma via de mão dupla, porque a pobreza é hoje a maior responsável pela escravidão contemporânea. E, claro, a maioria dos escravos contemporâneos no Brasil é formada por negros e mulatos. Embora o país tenha avançado muito nos últimos anos no campo social, continuamos com altos índices de pobreza e, especialmente, de desigualdade.
Para mim, não faz nenhum sentido ser a oitava economia do mundo e septuagésimo nono em Índice de Desenvolvimento Humano. Pobreza, sem dúvida, leva as pessoas a uma situação de vulnerabilidade em relação ao trabalho escravo contemporâneo. Ninguém se submete a uma condição degradante de trabalho se tiver uma outra opção.
Combater o trabalho escravo é, então, combater a pobreza e criar um ambiente de justiça social, onde todos tenham as mesmas oportunidades e erros históricos possam ser corrigidos. Claro que combater a pobreza no mundo é uma tarefa complexa, que envolve uma mudança gigante na ordem mundial. Mas enquanto a vacina contra a pobreza e a desigualdade não fica pronta, existem muitos remédios capazes de erradicar o trabalho escravo contemporâneo, seu efeito colateral. São vários: fiscalização, responsabilidade social por parte dos patrões, leis trabalhistas eficientes, punição exemplar aos infratores, amparo às vítimas, entre outros.
Na minha opinião, porém, nenhum remédio é mais poderoso do que a informação. Porque é a informação que vai fazer com que alguém deixe de achar normal haver pessoas trabalhando em condições degradantes. Muitos trabalhadores sequer sabem que são vítimas dessa prática. Muita gente de bem no mundo inteiro sequer acredita que a escravidão ainda exista, pois associa-a, com alguma razão, aos navios negreiros de um passado distante.
Quando eu disse, com pesar, que a escravidão faz parte da cultura brasileira, também posso dizer, com orgulho, que o Brasil é um dos países líderes no combate a essa prática nefasta.
Uma das ferramentas mais importantes na luta contra a escravidão é a divulgação de uma lista com os nomes de pessoas físicas e jurídicas que foram apanhadas fazendo uso desse tipo degradante de mão de obra, a “lista suja do trabalho escravo”, como é chamada.
No entanto, esse extraordinário instrumento, infelizmente, foi, há pouco tempo, suspenso pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro, que, por sua vez, respondeu a pressões das forças interessadas na não divulgação da lista.
Ninguém vai a público dizer que é a favor do trabalho escravo, mas é impressionante o lobby que existe a favor de sua manutenção. Vinte e um milhões de pessoas são vítimas dessa prática no mundo, gerando uma receita ilegal de US$ 150 bilhões por ano. A quem interessa a suspensão da lista suja? A quem tem medo de ver seu nome publicado nela, claro.
A definição brasileira de trabalho escravo é a mais avançada do mundo! Aqui, qualquer pessoa que trabalhe em condição degradante, em jornada exaustiva ou que trabalhe por dívida é considerada vítima do trabalho escravo. Já há uma pressão forte no Congresso (talvez o mais reacionário e conservador da História deste país), por parte desses interesses organizados, para que a definição brasileira seja mudada e para que seja considerado escravo apenas o sujeito proibido, por força, de deixar seu local de trabalho.
Se, de fato, conseguirem mudá-la, estaremos dando mais um passo gigante para trás, como fizemos com a aprovação do novo Código Florestal e com a redução da maioridade penal. A quem interessa mudar a definição de trabalho escravo brasileira que tanto gera elogios no mundo inteiro? Aos que submetem os trabalhadores às condições compreendidas nela, isso também está claro.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) está lançando uma campanha mundial chamada 50 for Freedom, que espera que, até 2018, líderes de 50 países ratifiquem seu novo protocolo, muito específico na condenação à prática do trabalho forçado. Parece fácil, mas não é. Até agora, só o Níger assinou. Que exemplo bonito seria se o Brasil fosse o segundo país a fazê-lo! Encontrei a presidente Dilma em Bogotá e obtive dela a garantia de que o Executivo fará a proposta chegar ao Congresso o mais rápido possível e de que ela vetará qualquer tentativa de mudança na definição brasileira de trabalho análogo ao escravo.
Serão ações como ratificar essa carta que farão o Brasil seguir sua vocação progressista e se tornar exemplo no que se refere à igualdade dos direitos civis, direitos humanos e sustentabilidade. Esse, no final das contas, é o caminho que importa. E livremos os brasileiros das próximas gerações da profecia de Joaquim Nabuco.
*Wagner Moura é um ator brasileiro e embaixador da Boa Vontade da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Artigo publicado originalmente pelo jornal O Globo, em 2 de novembro de 2015.
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