Que a leitura transforma, todo mundo sabe. Mas para a educadora paulistana Rosely Sayão, que há 40 anos trabalha ajudando os pais a educarem seus filhos, a literatura tem uma missão ainda mais importante na vida das crianças: inseri-las na sociedade e ensinar, em palavras simples, sobre a grandiosidade da vida.
Escritora, blogueira e comentarista de veículos como Folha de S. Paulo, UOL e Band News FM, Rosely aposta na leitura como prática para que as crianças exercitem não apenas a educação, mas também o letramento, ou seja, a capacidade de se colocar no mundo por meio da linguagem.
Rosely, que cresceu roubando a chave da biblioteca de seu pai para ler Monteiro Lobato, teve um papo super gostoso com a gente sobre livros e sobre os vínculos familiares que se formam com a leitura. Confira ;-)
Ler para as crianças é importante para a educação formal, ou para o aprofundamento de laços entre pais e filhos? Ou para ambos?
Primeiramente, é o estabelecimento e a manutenção o de vínculos. Porque quando uma pessoa traz os filhos ao mundo, a grande missão dela é apresentar o mundo para essa criança. E nada melhor que a literatura para apresentar esse mundo.
É dizer para a criança que estou aqui para isso: contar histórias sobre esse mundo em que você vai viver. Para a educação formal, a leitura traz efeitos colaterais: na relação com os pais, na curiosidade, na escuta atenta, com a criança sentindo que aquele tempo da leitura é um tempo dedicado só para ela…
Tudo isso reflete na formação, na cultura e na imaginação dos filhos.
Ao longo de seu amplo contato com pais e filhos, a senhora pode dizer que ler para os filhos é uma preocupação que as maiorias dos pais têm?
O que há é um estímulo muito grande da sociedade para que os pais pensem no futuro dos filhos. E, ao se pensar só no futuro, o presente fica muito prejudicado. As crianças perdem grande parte da infância em nome de um futuro que não há garantia alguma que vá ter o caminho que a gente imagina, oferecendo o que a gente oferece.
Os pais estão muito preocupados com a alfabetização, mas é a leitura de histórias para os filhos que introduz a questão do letramento, que é mais importante que a alfabetização.
O QUE É LETRAMENTO? “De maneira resumida, é a compreensão que a linguagem é um meio de comunicação. Por que se aprende a ler e escrever? Para tirar nota na escola apenas? Se as crianças têm a compreensão de que a linguagem escrita pode comunicar o que ela pensa e sente, a motivação é totalmente diferente.
Os livros devem ser tratados desde cedo como um lazer, ou como um hábito — algo como uma “lição” importante?
Eu não gosto da palavra hábito. Eu gosto mais da palavra ritual, acho que o ritual de leitura pode ser estabelecido. Porque o ritual, diferentemente do hábito e da rotina, pode ser mudado. Por exemplo, se a mãe costuma contar histórias antes do filho dormir, e um dia ela estiver muito cansada, ela pode não contar aquele dia mas o ritual não fica afetado, muda-se a hora e o jeito. Quando é rotina, aí afeta. É um momento que deve ser gostoso, não é mesmo?
Eu conheço muitas famílias que têm esse costume de contar história pro filho antes de dormir, algo que termina quando se completa 5 ou 6 anos. Mas seria justamente nessa idade a hora de pedir pros filhos contarem as histórias para os pais, para ver o que sai, que narrativas são essas que eles aprenderam a criar ouvindo todas as histórias que contamos a eles.
Acho bonito as famílias que diversificam a maneira de contar: a dramatização no tom de voz, o uso de objetos, deixar o filho contar pelas imagens… O letramento, alias, não se dá apenas através da linguagem escrita ou oral — tudo é linguagem.
Quando a criança vê um livro ilustrado, é uma linguagem. Há um filme nacional antigo, que me escapa o nome, em que numa cena um dos personagem tira sarro do irmão mais novo que está lendo um livro ao contrário. Aí o irmão pequeno responde dizendo — “E daí? Mesmo assim eu estou lendo!”. É disso que estou falando.
Maior lembrança da escritora na infância foi Monteiro Lobato
Foto: Ana Shiokawa
Às vezes é difícil para alguns pais atuarem com criatividade e desenvoltura na leitura de histórias. A senhora acha que isso é reflexo de sermos um país onde lê-se pouco?
A leitura é um mergulho numa grande aventura. Por exemplo, perceber como uma palavra vem antes da outra, e combinar as duas de uma maneira inimaginável — jogar-se no texto. Nossa maior dificuldade é essa, pois há muitos anos nós entramos na era do texto objetivo, que é ir logo aos finalmentes, quando a beleza da leitura não são os finalmentes.
Os livros são boas táticas para os pais responderem a perguntas como “de onde vem os bebês?”
Sim, eu adoro isso. Porque há conversas que são constrangedoras, temas como sexualidade e morte. E há livros maravilhosos que são capazes de abordar esses assuntos supercomplexos de maneiras poéticas e acessíveis.
Eu vejo o livro como mediador da relação dos dois. Algo como, no fundo da sinceridade, o pai querendo dizer “olha me filho, se eu tivesse condição, eu lhe explicaria essa questão assim como está escrito nesse livro”.
Por fim, quais suas lembranças de leitura infantil? Que livros passaram por sua infância?
Meu pai foi um filho de imigrantes árabes que não pode estudar. Ele fez só o primário e teve que sair, pois era muito pobre. Mas com o tempo ele teve vontade de chegar até o conhecimento, então uma parte de seu salário ele usava para comprava livros. E para poder ter mais livros, comprávamos em sebos. Então nós tínhamos uma biblioteca maravilhosa que ele fechava à chave, e a gente morria de curiosidade!
O primeiro livro que leram para mim foi “Reinações de Narizinho”, do Monteiro Lobato. E mais crescida, aos 10 anos, eu aprendi a roubar a chave da biblioteca para ler os livros (risos). Nessa idade eu li “Urupês”, que eu não fazia a menor ideia do que ele falava, mas eu li! Então a minha grande lembrança da infância foi Monteiro Lobato, eu imaginava muito o sítio (do pica-pau amarelo).
Este texto foi publicado originalmente em www.medium.com/itau
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