O que tem de específico as eleições presidenciais de 2014? Como ela será lembrada? Qual foi o papel da Internet? Agora mesmo, durante o segundo turno, enquanto Dilma e Aécio ainda trocam acusações de corrupção da coisa pública e promessas de uma vida melhor, quem gosta de política diz que o pleito deste ano é um dos mais emocionantes desde que voltamos à democracia. A julgar pelos números das pesquisas eleitorais e pelas timelines da vida, o segundo turno foi a demonstração, em termos brasileiros, do conceito de polarização. Na reta final, chegaram um homem e uma mulher, com perfis biográficos e de performance acentuadamente diferentes. Mas não é só isso. Enfrentam-se neste segundo turno dois partidos que disputam a presidência desde as eleições de 1994.
Alguns veem na polarização entre PT e PSDB um fenômeno político que fortalece o sistema político brasileiro (com partidos demais para o gosto de alguns). Enquanto outros acham essa polarização é a causa de muitos dos males que nos assolam. E que uma ruptura dessa lógica pode ser abrupta e, quem sabe, nem mesmo democrática. Mas para além do julgamento deste bipartidarismo presidencial, meu argumento é que as repetidas experiências de embates eleitorais e de governo dos dois partidos (PSDB duas e PT três gestões) acumularam um volume enorme de argumentos e conteúdos midiáticos que são recuperados e estrategicamente usados no embate eleitoral. Neste processo de recuperação e gestão das memórias, a Internet serve como instrumento e ambiente. Tanto as campanhas oficiais têm seu trabalho facilitado por encontrar online muito dos materiais que precisa para a construção de seus conteúdos, quanto os apoiadores de cada lado fazem farto uso de arquivos de jornais, vídeos, publicações em blogs e sites de redes sociais que foram coletados e armazenados. Veja também: Artigo: Os perfis de liderança de Aécio Neves e Dilma Rousseff Na minha opinião, algumas variáveis potencializaram o uso da Internet como arquivo vivo, memória fresca, de modo especial nestas eleições: 1. Ambos os candidatos têm vida pública pregressa bem documentada em vídeos, matérias jornalísticas e documentos administrativos. Dilma, apesar de não ter uma carreira política com muita visibilidade até que Lula a escolheu para sucedê-lo, é a atual presidente. Aécio, foi governador de Minas Gerais, é atualmente Senador pelo mesmo estado e, além do jornalismo político, é de longa data coberto pelo jornalismo de celebridade. 2. PSDB e PT, os partidos que se enfrentam, já governaram o país. Portanto, há farto material sobre as ações e omissões dos governos de ambos. O PT apresenta seus feitos de transformação da sociedade brasileira em gráficos, documentos oficiais e declarações. O PSDB, apesar de receoso, corre atrás de provas de que resolveu o problema da inflação e implantou o Real. Petistas apresentam notícias sobre as denúncias de compra de votos para emenda da reeleição que possibilitou o segundo governo de FHC, o inesquecível apagão, entre outros, para refrescar a memória dos tucanos. Estes respondem com links para matérias que nos lembram da compra de apoio no Congresso Nacional e denúncias sobre desvios na Petrobras, para citar só os dois casos emblemáticos. No meio disso tudo, o vazamento de uma delação premiada leva para os jornais a memória dos escândalos de corrupção. Primeiro, apenas sobre o PT, mas na sequência acabou por atingir também o PSDB. 3. As estratégias das campanhas de Dilma e Aécio também contribuíram para o emprego da Internet como recurso para a memória. Dilma, desde o primeiro momento, adotou como estratégia comparar os governos petistas e tucanos (A morte trágica de Eduardo Campos e a inesperada Marina suspendeu essa abordagem por um tempo). Aécio, por sua vez, começou a campanha falando do seu governo em Minas. 4. O esforço de digitalização de conteúdos analógicos tem aumentado constantemente o acervo digital de jornais e TV’s disponível online. Pessoas interessadas em saber quais foram as capas dos principais jornais brasileiros durante o ano de 1995, por exemplo, conseguem com relativa facilidade e a preços acessíveis, quando não gratuitos. O mesmo pode ser dito para reportagens de telejornais. Ao mesmo tempo, boa parte do que se produziu, ao longo das últimas duas décadas, já em formatos digitais para a distribuição online permanece disponível. Claro, que é preciso paciência e disposição para achar conteúdos soterrados pelos algoritmos dos buscadores, mas tá quase tudo lá e eventualmente volta como arma discursiva na disputa política. Vide o post de Juca Kfouri, publicado em 2009, acusando Aécio de dar um tapa em uma “acompanhante”, que ressurgiu para a visibilidade pública durante as eleições. 5. A organização da comunicação em rede permite a formação de comunidades especializadas em determinados temas e questões. Por exemplo, nesta última eleição, comunidades de jornalistas estiveram especialmente interessados em saber mais sobre as denúncias contra Aécio de que ele tenta silenciar jornalistas através de processos jurídicos e pressão econômica. E com esse propósito muito entulho foi revirado até que se achou notas e um documentário. Enquanto comunidades de médicos, embora não a totalidade da categoria, demonstraram disposição para criticar as políticas de Dilma para a saúde, especialmente o programa Mais Médicos. Enfim, cada comunidade fez uma busca ativa por notícias e conteúdos atuais e históricos que atendessem aos interesses comuns. Na minha opinião, justamente pela capacidade de formar comunidades e disseminar conteúdos, o Whatsapp parece ter tido um papel de destaque nestas eleições. A boa notícia, na minha opinião, é que as características sócio-técnicas da Internet trazem um incremento para a nossa memória sobre os acontecimentos e atores que são importantes para tomarmos decisões políticas. Por hora, assumo a hipótese de que os conteúdos estocados na Internet e usados pelas campanhas servem de insumo para que os eleitores tomem suas decisões. Possivelmente, está dando muito mais trabalho para quem se aventura a considerar os argumentos de um lado e outro, mas há aqui, aposto, um potencial ganho de reflexão na decisão do voto. Essa é uma leitura generosa e possivelmente ingênua, mas é o que tem enquanto ainda não apuramos o que vivemos nos últimos meses. *Samuel Barros é doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (PósCom-UFBA) com bolsa do CNPq. Atualmente, faz estágio doutoral no MIT Center for Civic Media. Membro do Centro de Estudos Avançados em Democracia Digital (CEADD) e do grupo de pesquisa Comunicação, Internet e Democracia (CID). E-mail: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/1685038857613373
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