Em algum ponto da História do Cinema, o ato de assistir filmes se torna mais do que uma experiência dividida entre comprar o ingresso, captar suas imagens e refletir sobre o que se assistiu. Esse ritual evoluiu em sua essência e começou a incluir em suas etapas o elemento da expectativa, ponto nebuloso nos estudos críticos que preferem isolar da equação o momento que precede a sessão para uma análise menos pessoal, mais imparcial. Muitos consideram que esse momento-chave para a consolidação da expectativa e do termo “blockbuster” (cunhado em 1975 em Tubarão) foi em 1977, na estreia arrebatadora de Star Wars: Uma Nova Esperança. E se ilude quem pensa que após 38 anos de franquia e já em seu sétimo longa-metragem, é possível disassociar a experiência de consumir ou analisar um filme como Star Wars sem fazer um balanço de sua importância para toda a indústria do entretenimento.
Em seu novo roteiro, o público conhece e aprende a se identificar com seus novos personagens, o ex-stormtrooper, Finn, e a catadora de sucata, Rey, antes mesmo de revisitar os personagens canônicos que marcaram a franquia, uma decisão extremamente corajosa e interessante. Mitificar personagens como Luke, Leia e Han Solo e tornar os novos integrantes da franquia como pessoas que já ouviram as lendas sobre eles é aproximar esses personagens do público, que assim como eles, cresceu ouvindo as histórias de suas aventuras. Uma estratégia ousada e surpreendente para um longa que tem o número “7” em seu título.O visual verossímil aproxima a estética de “O Despertar da Força” da Primeira Trilogia, evitando o “clean” e o excesso de computação gráfica que banhou os episódios I, II e III. A câmera de J.J. Abrams mistura as movimentações clássicas da franquia nas cenas de perseguição, subvertendo seu eixo em planos-sequência nas inúmeras cenas de voo com os maneirismos modernos de sua filmografia, como o zoom que conecta um plano que situa o espectador geograficamente com um plano mais próximo que enfatiza seus movimentos.A sensação de urgência na constante fuga que embala o filme aproxima seu tom novamente daquele apresentado em sua trilogia original, onde suas corridas apresentavam uma surpresa em cada esquina (algo que acontece literalmente nessa sessão, enfatizado de forma fantástica por uma decupagem sagaz e eficiente). A criatividade do projeto pode não estar na elaboração da trama, já que o próprio arco principal se inspira fortemente na mesma estrutura da Jornada do Herói seguida por “Uma Nova Esperança”, mas na forma como essa narrativa reage e antecipa as reações de seu público.
Tanto a trajetória de Rey quanto a de Finn são introduzidas com mesmo peso e importância, ambos são retirados da estabilidade de suas vidas por um fator externo e ambos postos ao teste moral e heróico. Aquilo que poderia dividir negativamente a atenção da platéia e enfraquecer o potencial de apego aos novatos, se torna um jogo interessantíssimo entre a dupla, que esbanja química e timming (cômico e dramático). E esse jogo de ping-pong do protagonismo, aliado a uma divulgação discreta, só acrescenta surpresa e excitação no ponto alto de seu clímax, quando Rey, a personagem feminina que passa a maior parte do filme sendo subestimada pelo seu sexo, seja na hora de pilotar uma nave ou entrar em uma luta, liga pela primeira vez um sabre-de-luz. Essa arma elegante usada em tempos mais civilizados se torna um objeto de empoderamento, e, se nos cartazes ele estava sempre em posse de Finn, é ainda mais regozijante ver que a verdadeira merecedora do maior símbolo da Força é justamente a catadora de sucata, entregando de vez o protagonismo do filme em suas mãos. A luta final entre Rey e o vilão Kylo Ren, desajeitada, realista, concorre facilmente ao título de melhor batalha da franquia. “E o que falar sobre esse vilão que conheci agora e já considero pacas?” Kylo Ren é construído visualmente de uma forma que seria impossível disassociá-lo à Darth Vader. O tom de sua voz, o preto predominando sua figura e o formato de sua máscara remetem obrigatoriamente ao maior ícone da franquia, o que, consequentemente, impõe um risco tremendo de enfraquecimento pela sombra de seu antecessor.
Porém o mais interessante sobre a construção desse novo antagonista, é que o filme reconhece suas fraquezas, reconhece a ligação com Vader e joga com o fato dele mesmo ter o complexo de nunca conseguir superá-lo, o que, automaticamente, já traz uma tridimensionalidade maior ao personagem. A instabilidade de seus poderes deriva de sua própria incapacidade de controle emocional, o que deixa ainda mais palpável sua participação no Lado Negro da Força e propõe uma imprevisibilidade extremamente perigosa em suas ações. E é através dessa instabilidade emocional e imprevisibilidade que “O Despertar da Força” leva aos fãs uma das cenas mais tristes e emocionantes de sua franquia. A morte de Han Solo é preparada desde seu retorno, e cada piadinha sarcástica, cada olhar inesperadamente carinhoso, cada sorriso carismático são degraus alcançados para que sua queda seja ainda mais impactante para o público. A cena possui um tempo diferente do que se espera de um filme de Star Wars, um tempo contemplativo, um silêncio aterrorizante que anuncia sem medo a morte que está por vir. É o suspense sendo usado à favor do drama, é a luz do sabre sendo usada em favor da violência latente, e a finalização lógica entregue por um som rápido e ensurdecedor. Uma parte da franquia morre junto com Han Solo, outra parte renasce junto com a coragem de ir além do que é seguro. O filme esbanja tamanha honestidade com seu público e consigo mesmo, que passam despercebidos alguns de seus maiores problemas. Enquanto há uma naturalidade forte na introdução de seus novos personagens, em seus diálogos e em suas relações, as conversas entre os veteranos, que fazem o papel de ligação entre esses trinta anos de hiato, soam desarmônicas e expositivas demais para pessoas que já possuem as informações que são passadas. Além deles, a introdução do Líder Snook (Andy Serkis no pior e mais genérico design que já lhe foi atribuído em CGI), o “novo Imperador”, têm seus diálogos dignos do pior dos vilões de Power Rangers, se tornando uma promessa frustrante de futura grande ameaça. Star Wars: O Despertar da Força pode não ser o melhor filme de sua franquia, pode ser refém de seus antecessores, pode até capengar em algumas de suas explicações e entregar menos do que promete em sua finalização; mas, verdade seja dita, é o mais inteligente na forma de lidar com a legião de fãs adquiridos em quase meio século. Seja nas referências sutis que não se sobrepõem à trama principal, seja na quebra de expectativas e na capacidade de lidar com tudo aquilo que lhe era esperado e não foi entregue pela Nova Trilogia dos anos 2000, é impossível não dar esse mérito por honrar a enorme responsabilidade que foi dada à J. J. Abrams. E ele responde. A mesma resposta humilde de Kylo Ren quando encara a máscara destruída de Darth Vader: “Eu vou terminar o que você começou”. E se seguir esse ritmo, irá terminar de forma excepcional.
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