Onde você estava quando o temporal desabou? O que fazia quando os ventos de 63km por hora varreram as ruas da cidade? Começo esse texto relembrando a quarta-feira (20) caótica que tivemos em Salvador. Eu havia acabado de sair do trabalho. Reunião geral do departamento, apresentação das entregas profissionais do ano, clima bom e descontraído. Teve bolo de chocolate e parabéns para um querido colega aniversariante.
Comi a minha fatia, peguei um Uber e fui à farmácia. Havia lembrado que o verão começava nesta sexta-feira (22) com promessa de altíssimas temperaturas, talvez batendo os 37 graus, e que eu não tinha mais filtro solar em casa. Quem sabe descolava uma promoção de fim de ano? Bastou cruzar a porta da farmácia para a chuva começar.
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Agradeci por ter chegado em tempo. Escolhi o filtro solar, um protetor labial, também aproveitei para comprar umas pastilhas de vitamina C. Sempre bom, né? Eis que, na fila, lendo as informações que constam do rótulo do filtro solar, me peguei ouvindo (sem querer!) a conversa que travavam duas distintas senhoras, aparentemente grandes amigas que tiraram a tarde para passear na farmácia. Mais do que uma conversa, um conjunto infindável de muxoxos e lamúrias sobre a vida em Salvador.
“Essa cidade está impraticável”, disse uma delas, e a outra completou: “Impraticável é pouco. Está insustentável!”. Brancas, bem vestidas, com muitos anéis e colares, elas desabafavam sobre sua falta de sorte em morar numa cidade “quente, abafada demais”, “sem boas praias”, “bons teatros”, onde sequer há um “estacionamento decente” para deixar um carro “por duas horinhas apenas”. Fingi estar atento à leitura do rótulo do filtro solar para que elas, cientes da minha presença, não interrompessem o seu colóquio.
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A senhora mais velha, com farta cabeleira loira, retirou da cestinha vermelha um tubo de laquê de marca nacional. Esbravejou para a amiga. “Veja! Sequer um laquê decente se acha.” A outra concordou. “Por isso, quando viajo, trago os meus de fora.” Quando a chuva apertou, pessoas que passavam na rua correram para a farmácia, se aglomerando ante a porta de vidro. As amigas entreolharam-se. Uma fez bico, a outra torceu o nariz. Mais nova, a senhora ruiva aproximou-se do ouvido da mais velha, obviamente buscando um pouco mais de reserva para comentar. “Isso já é demais!”. Parecia indignada com o fato de as pessoas tentarem se proteger do temporal no mesmo local em que elas estavam. Parei de acompanhar o diálogo. Não havia nada de aproveitável nele. Minto. Havia, sim. Havia a inspiração para ouvir, ali mesmo, em alto som, o texto original da jornalista estadunidense Mary Schmich na voz do também jornalista Pedro Bial.
Cronista do Chicago Tribune, Schmich escreveu uma crônica naquele jornal intitulada “Wear Sunscreen”, que viria a viralizar no Brasil a partir da tradução feita por Bial e transformada num videoclipe que encerrou o último Fantástico do ano de 2003. O texto em questão, “O filtro solar”, é considerado por muitas pessoas uma espécie de “manual de autoajuda” por trazer lições de vida e por conter conselhos como “aproveite a beleza da juventude”, “não se preocupe com o futuro”, “use fio dental”, “seja cuidadoso com os joelhos” e “dedique-se a conhecer os seus pais” porque “é impossível prever quando eles terão ido embora”, como escreveu Leonardo Neiva para a Gama Revista.
Méritos do texto à parte, o que me interessa nele é a reflexão que nos propõe sobre a finitude da vida, sobre a sua fragilidade e precariedade, sobre, enfim, a nossa condição transitória e insuficiente, tudo aquilo que as duas distintas senhoras pareciam desconhecer. Por isso, sem que elas entendessem a razão, abri o YouTube, procurei o vídeo com a voz de Bial e dei play. As amigas, sem nada entender, me fuzilaram de cima a baixo, afastaram-se de mim. Fiz o sinal da cruz e agradeci.
Confira o vídeo abaixo
Ricardo Ishmael
Ricardo Ishmael
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