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O olhar dela

Minha amiga, me desculpe a dureza, mas você precisa me ouvir

Carta a uma amiga que passou por uma situação de violência

Jéssica Senra • 29/11/2023 às 11:00 • Atualizada em 01/12/2023 às 12:16 - há XX semanas

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Eu sinto muito que isso tenha acontecido com você. Você não merecia e você não merece ser violentada. De nenhuma forma. Você merece ser amada, eu espero que você saiba disso.


				
					Minha amiga, me desculpe a dureza, mas você precisa me ouvir
Carta a uma amiga que passou por uma situação de violência. Divulgação/ Canva
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Eu sei que, neste momento, as emoções são muitas e misturadas.

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Que uma parte de você está muito triste e dolorida, uma dor além do físico, uma dor na alma. Tem uma parte sua muito triste porque sabe que, com essa violência, se rompeu algo muito precioso numa relação: a segurança.

Aquela segurança de quem confia a própria vida ao outro, de quem acredita que aquela pessoa vai sempre zelar por você. Perde-se para sempre nesta relação algo que quase todas nós mulheres desejamos: nos sentirmos protegidas por nosso parceiro.

O relacionamento amoroso precisa ser o lugar de repouso, o lugar de segurança para ambas as partes.

Sei que uma parte de você não quer acreditar que aquilo aconteceu. Uma parte de você que ama aquela pessoa pode tentar até se enganar e fingir que não foi tão grave. Uma parte de você quer esquecer, quer perdoar, quer compreender. Uma parte de você chega até a se culpar! Porque, assim, você pode continuar.

Mas, minha amiga, por mais que se tente, depois de uma violência, uma relação nunca mais é a mesma.

Uma vez vivida a violência, uma vez quebrada essa sensação de segurança dentro de uma relação, passamos a viver em modo de hipervigilância. Pisando em ovos. Com medo de que haja uma próxima vez. E quase sempre há.

Eu sei, eles pedem perdão. Dizem que nunca mais vai acontecer. Que vão melhorar. E até se esforçam. Passam um tempo sendo ótimos! E eu sei que tem coisas muito boas nesta relação. Se não fosse assim, por que vocês estariam juntos? Claro que há momentos ótimos e talvez eles sejam até a maioria.

Mas, depois da primeira violência, a relação deixa de ser sustentada pelo amor. A lembrança do ocorrido vira uma amarga ameaça, um lembrete do risco iminente e, assim, o medo e a dominação passam a conduzir o relacionamento.

Infelizmente, o que a realidade mostra é que pessoas que violentam uma vez voltam a repetir a violência. Que a tolerância e o perdão a uma violência só colocam a vítima em uma posição de mais risco. As violências sempre voltam a acontecer. E se tornam cada vez mais graves.

Eu sei que você queria que fosse diferente. Eu também. Mas a imensa maioria dos casos repete em looping o ciclo de violência. E ele só termina de uma forma: com o feminicídio.

Quem ama não ameaça. Quem ama respeita. Quem ama conquista. Quem ama cuida. Quem ama protege. Mesmo na raiva. Há limites que a gente não ultrapassa. O amor traz consigo o ímpeto de cuidado e proteção.

A violência é incompatível com o amor.

Eu sei que pode ser confuso às vezes. Porque a violência foi e é muito naturalizada nas nossas relações. O castigo físico a crianças era tolerado até pouco tempo atrás, por exemplo. Ainda hoje, tem gente que acredita que a palmada ajuda a educar. Ela ajuda mais a traumatizar. Colocar o outro sob o medo, sob a ameaça, faz com que adote determinado comportamento por medo e não pelo respeito. Não pela consciência. Não é amor. É dominação. Vale para crianças. Vale para mulheres.

Levamos conosco essa confusão entre amor e violência, entre controle e cuidado, entre desrespeito ao nosso espaço, ao nosso desejo e prova de amor.

Eu sei, minha amiga, que você foi violentada em lugares em que deveria se sentir segura. Que isso pode ser confuso. Mas não aceite, em hipótese alguma, estar com alguém que represente uma ameaça para você.

Você não merece ser maltratada. Você não merece se sentir acuada. Você não deve se manter em nenhuma relação que te faça sentir mal. Você merece ser amada. Você merece estar com alguém que te faça sentir segura.

Sei que, no fundo, há uma parte de você que acha que, se você tivesse agido diferente, talvez isso não tivesse acontecido. É um mecanismo de defesa. A gente quer se convencer de que, se agirmos diferente, estaremos protegidas. Mas não é bem assim. Isso é o que querem que a gente pense. Porque, assim, inconscientemente podemos adotar o comportamento desejado de submissão. E porque, assim, tiramos a responsabilidade de quem agride.

Isso é manipulação: culpar a vítima pelo comportamento do agressor.

Uma violência é culpa de quem violenta e não existe argumento contrário. Os covardes sempre tentam colocar no outro a responsabilidade por seus atos. E já sabemos que mulheres costumam ser sempre responsabilizadas por tudo. Mas, saiba: uma pessoa não-violenta, na mesma situação, não age com violência.

Um dos principais gatilhos de violência costuma ser a frustração. Na psicologia, a frustração é entendida como aquele sabor amargo de quando nosso desejo não é atendido. De forma simples: quando recebemos um ‘não’. A forma de lidar com este ‘não’ é que indica o nosso nível de tolerância à frustração. Quanto menor a tolerância, maior costuma ser a agressividade.

Por isso se costuma dizer que você conhece uma pessoa quando diz ‘não’ pra ela. É fácil gostar de alguém que diz ‘sim’ pra tudo. Quando você diz ‘não’ é que você percebe quem é a pessoa com quem você convive.

Num olhar mais amplo e mais generalizado, mulheres estão acostumadas a satisfazer homens. São socializadas para isso. Eles, por sua vez, são socializados para terem seus desejos atendidos. Quando isso não acontece, eles tentam restabelecer o “padrão” que, diferentemente do que se tenta convencer, não é de amor e, sim, de dominação.

A agressividade é um comportamento hostil associado à necessidade de autoafirmação ou de autoproteção. Por isso, muitos homens agem de forma agressiva, relembram que a violência pode ser aplicada a qualquer momento. “A escolha é dela”. Ou seja, se você fizer o que quero, não acontece nada de ruim.

Isso não é escolha.

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O desrespeito ao ‘não’ e aos limites que a mulher tenta impor costuma ser demonstrado já em início de relacionamento, só que nem sempre a gente percebe. Ninguém sai agredindo ninguém quando se conhece, mas em pequenas ações já se nota que isso pode acontecer no futuro. Preste atenção aos sinais.

Observe, por exemplo, aquelas “brincadeiras” que a pessoa faz (só divertidas para ela) e que te fazem sentir mal. Você pede para parar e a pessoa continua. Ela não respeita seu limite.

Você diz que não quer fazer tal coisa, e a pessoa insiste, faz chantagem emocional e te manipula para que você faça o que ela deseja. Ela não respeita o seu desejo.

Você diz ‘não’ e a pessoa se torna agressiva, fala alto, engrossa o tom, intimida... Ela não respeita você.

Minha amiga, isso não melhora com o tempo. Isso só piora. Eu sinto muito, sei que dói, mas não adianta insistir em ficar. Deixe que a pessoa busque ajuda se ela quiser melhorar. Ficar com alguém assim só te coloca em risco.

Eu sei que você tem um bom coração e acha que é sua responsabilidade melhorar o outro. Mas não é. E você nem consegue, ainda que queira. Ser agressivo e violento pode estar relacionado a traumas que só um profissional consegue tratar.

Pode ter a ver com histórico de violência, seja física ou emocional; com falta de amor e carinho; com ausência de limites; com algum trauma de infância, como a separação dos pais ou a perda de alguém querido.

Ou seja, a agressividade é algo que pode e deve ser tratado, mas não se resolve apenas pela força de vontade. E não é você, minha amiga, quem vai conseguir curar isso. Por maior que seja o seu amor.

Eu sei que dar o passo de sair de uma relação com alguém que amamos é difícil. São muitas desilusões ao mesmo tempo. Mas ajuda quando deslocamos o olhar do outro para nós mesmas. Quando prestamos atenção não no amor pelo outro, mas no amor por nós mesmas.

Antes de amar quem quer que seja, precisamos garantir que esteja forte o amor que a gente dedica a nós mesmas. Ele precisa vir em primeiro lugar. Esse lugar nos prioriza e nos protege. Esse lugar diz ao outro e a quem está ao nosso redor o que achamos tolerável ou não. A gente é quem ensina ao outro como queremos ser amadas.

Se nós mesmas não nos amarmos, como podemos esperar que nossos parceiros ou parceiras nos amem? E como podemos amar alguém se não temos amor pela pessoa mais importante de nossa vida, que somos nós mesmas?

Minha amiga, eu sei que no momento tudo está muito dolorido e que você acha que não vai conseguir superar. Mas eu te garanto: você vai conseguir. A gente sempre supera!

Se ame. Se priorize. Determine a forma que você aceita e merece ser tratada.

Reúna forças, peça ajuda se necessário, mas não tolere e se retire de qualquer situação de violência que esteja vivenciando. Há muita gente que te ama e quer ver o seu bem. É com essas pessoas que você deve estar. Você merece um lugar de amor.

Me desculpe a dureza das palavras, mas você precisa me ouvir.

Imagem ilustrativa da coluna O Olhar Dela
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