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O olhar dela

Não importa o que aconteceu: a culpa é dela!

No artigo dessa semana, Jéssica Senra fala sobre o machismo e culpa associada as mulheres pela violência que sofrem

Jéssica Senra • 08/11/2023 às 10:00 • Atualizada em 14/11/2023 às 12:19 - há XX semanas

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Uma onda de revolta se espalhou entre homens depois da pergunta: se traição for motivo para matar, quantos homens vão sobrar?


				
					Não importa o que aconteceu: a culpa é dela!
Não sei nem o que aconteceu, mas a culpa é dela. Divulgação/ Canva
Ouça o áudio Não importa o que aconteceu: a culpa é dela! •

Aparentemente, alguns entenderam se tratar de um chamado para a revanche e o extermínio dos pobres machos traidores. Confesso ter sido um deleite ver muitos homens tendo que dizer que traição NÃO é motivo pra matar ninguém – o que sabemos, mas muitos homens ignoram e matam mesmo assim. E tantos outros justificam mesmo assim.

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E matam também mesmo que não haja traição - é importante registrar. Na maioria dos casos de feminicídio, o homem mata porque a mulher o rejeita. Porque a mulher resolve deixá-lo. Eu hoje poderia perguntar: se largar a esposa for motivo para matar, quantos homens vão sobrar?

Calma, homens! Não quero fomentar nenhuma violência contra vocês. Eu quero é que vocês parem de nos violentar. Nós queremos viver em paz! Nem quando temos o direito de reagir e matar, o fazemos. Mulheres são violentadas diariamente dentro de relacionamentos. Agredidas, estupradas e nem por isso matam esses agressores. Ainda assim, todas as responsabilidades pelas violências masculinas são depositadas em suas costas.

Por que todos os pecados do mundo são culpa da mulher?

Quando o corpo da cantora gospel Sara Mariano foi encontrado carbonizado num matagal e seu marido confessou o crime, alegou que ela tinha casos extraconjugais. Com isso, ele quis dizer e já acionar o imaginário popular para justificar seu crime: a culpa é dela.

Em julho, uma jovem foi estuprada após ter sido deixada desacordada por um “amigo” dentro de um carro por aplicativo. Ao chegar na casa dela, o irmão da vítima não atendeu o interfone e o motorista a deixou inconsciente na porta da residência. Um homem passou, viu a jovem, a carregou para um campo de futebol e a estuprou. Com a notícia nas redes, correram logo para dizer: quem mandou ela beber tanto? Era pergunta, mas era uma afirmação: a culpa é dela.

No mesmo mês, mais de dez mulheres denunciaram um médico ginecologista baiano por abusar das pacientes durante a consulta. Uma dessas vítimas, no dia do abuso, ao chegar em casa e relatar ao marido, ouviu dele que se isso aconteceu foi porque ela “deu ousadia”. Ou seja, um médico predador contumaz abusava da sua posição para violentar mulheres. Mas a culpa é dela.

Uma garotinha de 10 anos de idade foi morta a facadas e abandonada em um terreno baldio na cidade de Juazeiro, também em julho. O ex-padrasto da vítima foi preso e confessou ter matado a menina para se vingar da mulher que não quis mais estar com ele. Entre os comentários lamentando a situação, estavam alguns que diziam que as mulheres precisam escolher melhor as pessoas com quem se envolvem... Uma criança foi morta por um homem rejeitado pela mãe, mas foi ela que não soube escolher com quem se relacionar. A culpa é dela!

Infelizmente, eu poderia seguir elencando milhares de casos parecidos aqui. Todos eles com essa marca em comum: os agressores são homens. Mas a culpa é delas.

Não, minhas amigas e meus amigos, a culpa em todos esses casos é deles!!!

E a culpa por responsabilizar as mulheres é do machismo. E de um imaginário popular construído e alimentado cuidadosamente para sempre colocar as mulheres na posição de culpadas por todo e qualquer mal do mundo.

Quem nunca ouviu a história bíblica da criação do homem e da mulher? O livro mais vendido do mundo, já no seu início, conta que foi Eva, a primeira mulher, que desobedeceu a Deus e comeu o fruto proibido do conhecimento e seduziu Adão a prová-lo também. Quando Deus pergunta sobre a desobediência, Adão responde: “A mulher que pusestes ao meu lado apresentou-me deste fruto, e eu comi.” Ou seja, a culpa é dela!

O primeiro homem do mundo já transferia a responsabilidade pelo seu ato para a mulher.

O cristianismo e sua Bíblia foram e estão entre os principais balizadores do comportamento e da moral no Ocidente. Este e outros mitos contidos na Bíblia foram reforçados por religiões cristãs na construção de uma imagem estereotipada da mulher. Este mito insinua – ou melhor, defende claramente – que a culpa do pecado ter surgido no mundo é da mulher. A primeira pessoa que pecou no mundo foi uma mulher. E o homem que pecou o fez por influência dela.

Mas, antes mesmo da Bíblia e do Cristianismo, se encontra vastamente na mitologia grega outras tantas histórias que reforçam o estereótipo da mulher sedutora que bota o homem e a humanidade a perder.

No Mito de Pandora, ela é a primeira mulher criada pelos deuses. Revoltado porque Prometeu deu o poder do fogo aos homens, Zeus ordena que Hefesto molde da terra a primeira mulher, “uma bela maldade”, que será oferecida aos homens por vingança. Na criação de Pandora, Afrodite lhe dá o poder de causar desejos. Hermes lhe dá uma mentalidade desonesta e a capacidade de enganar. A primeira mulher do mundo, pela mitologia grega, é esta: bela, sedutora, desonesta e enganadora.

Oferecida ao irmão de Prometeu, sua curiosidade a faz abrir uma caixa que continha todos os males do mundo. Foi Pandora, a primeira mulher, criada com malícia e desonestidade, que abre a caixa e deixa escaparem e espalharem-se pelo mundo as dores, as doenças, a inveja, o ódio, a vingança, a guerra, os vícios... tudo de ruim que existe no mundo: a culpa é dela!!!

Helena de Troia, a mulher mais bela do mundo, era esposa de Menelau, rei de Esparta. Foi sequestrada por Páris, príncipe de Troia, que se encantou por sua beleza. Menelau, então, pede ajuda aos deuses para resgatar sua esposa e inicia-se a guerra de Troia. Quem você acha que ficou na história retratado como o responsável pela guerra? Páris, que sequestrou a mulher dos outros, ou Helena, “o rosto que lançou mil navios”? Sim, minha gente, a culpa é dela!!!

Quem mandou ser tão bonita?

Veja o Mito da Medusa, uma bela mulher, escolhida por Atena para ser sua guardiã. Deveria se manter casta para cumprir o papel de sacerdotisa. Mas sua beleza encantava deuses e mortais. Entre eles, Poseidon que, diante das constantes negativas a suas investidas, invadiu o templo de Atena, agrediu e violentou Medusa.

Ao saber da profanação de seu templo, Atena invoca os poderes do Olimpo. O que Atena queria? Vingar-se de Poseidon? Não, minha gente, ela quis destruir Medusa. E, para isso, ataca a sua beleza e a transforma numa bizarra figura com cabelos de serpente que nunca mais poderia ser olhada por ninguém, que transformaria em pedra quem o fizesse. Poseidon não conteve seus impulsos, agrediu e estuprou Medusa. Mas a culpa é dela!

“Ah, mas isso é coisa do passado. Hoje não é mais assim”. Não?

Essas tradições culturais continuam sendo reproduzidas e recicladas em várias outras histórias. Outros nomes, outros personagens, mas sempre a figura feminina colocada como maliciosa e culpada de todo o mal.

Outros mitos e arquétipos modernos perpetuam o mesmíssimo discurso. Estão reproduzidos em livros, filmes, novelas e em inúmeros produtos da Indústria Cultural.

Lembra de Lolita? No famoso romance do russo Nabokov, uma menina de 12 anos se envolve sexualmente com o padrasto, que a vê como uma sedutora. O mito da Lolita está associado à imagem da ninfeta, a “menina adolescente cujo comportamento e pensamento estão direcionados para o sexo; menina que desperta o desejo sexual”, segundo o dicionário.

Essa imagem de Lolita, ou ninfeta, responsabiliza meninas, crianças, por serem vítimas de abusos. O predador justifica seu crime se eximindo de responsabilidade: a culpa é dela!!

A figura da jovem sedutora foi reproduzida em várias outras obras. Quem não se lembra, por exemplo, da série brasileira Presença de Anita?

Crianças, adolescentes ou mulheres muito jovens que seduzem homens mais velhos. Pobrezinhos, eles não conseguem resistir à sedução dessa ninfeta.

E a Femme Fatale? Um retrato de mulheres como manipuladoras e enganosas, que usam da beleza e do sexo para seduzir e prejudicar os homens. Coitadinhos, né? Vítimas dessas malvadas.

Eu poderia seguir também elencando milhares de histórias deste tipo. Ou falar, ainda daquelas que buscam reforçar a crença de que as mulheres usam, por exemplo, falsas acusações para prejudicar a reputação dos homens. Mas já cansou aqui, né? Acho que deu pra mostrar o bombardeio de culpa imposta à mulher.

Então veja quantos mitos são construídos, contados e recontados e vão formando nosso imaginário de que as mulheres são manipuladoras, sedutoras e desvirtuam os pobres homens. Ora, os homens deveriam se decidir que imagem querem ter: dos donos do mundo ou dos manipulados pelas mulheres.

Tudo isso que estou escrevendo é uma amostra do que chamamos de machismo estrutural. Porque ele estrutura nossa forma de pensar e enxergar mulheres. Nossa forma de tratar mulheres. O espaço que é relegado às mulheres. Justifica as práticas discriminatórias e as desigualdades de poder entre homens e mulheres.

Está na mídia, que muitas vezes retrata mulheres de maneira estereotipada, enfatizando características negativas ou reforçando papéis de gênero tradicionais. Está na Indústria Cultural como um todo. Está em religiões. Está no Estado, que por muitos anos aceitou o argumento de legitima defesa da honra, que já teve e ainda tem muitas legislações que perpetuam o machismo.

São essas narrativas que determinam visões, comportamentos e normas sociais. É urgente combater essas ideias e promover uma sociedade baseada em igualdade de gênero, em que as pessoas são avaliadas independentemente de seu gênero e fora de estereótipos.

É nosso papel tomar consciência desta construção, das narrativas, estereótipos e arquétipos usados para responsabilizar mulheres por crimes cometidos por homens e todas as outras desigualdades de gênero que enfrentamos.

Precisamos reinterpretar essas mitologias, criar novas narrativas. Que sejam baseadas não em mitos, mas principalmente em histórias reais, fartamente disponíveis, de mulheres fantásticas que, apesar de todo esse poder usado para oprimi-las, realizam, produzem, criam, e transformam o mundo em um melhor lugar para se viver.

Imagem ilustrativa da coluna O Olhar Dela
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