Enquanto esperava a porta ser aberta para encontrar o namorado, a jovem foi confundida no corredor do prédio com a empregada da casa. No ponto de ônibus, o rapaz, que aguardava o coletivo, foi revistado pela polícia, mas o amigo nem foi tocado. Ao entrar no restaurante, num bairro nobre do Rio, a menina percebeu olhares incomodados com a sua presença. Dentro do carro com mais três pessoas, o rapaz, que estava no banco de trás, foi o único a ter os documentos pedidos pelo PM, que suspeitava de ele ter sequestrado o amigo, no carona. Essas histórias não são obras de ficção. Marcaram, respectivamente, a vida dos atores Erika Januza, Marcello Melo Jr., Heslaine Vieira e David Junior. Os quatro viveram tais situações na pele, justamente por tê-la mais escura. E agora, de certa forma, se veem nos seus personagens: Raquel, de “O outro lado do paraíso”; Edgar, de “Tempo de amar”; Ellen, de “Malhação”, e Dom, de “Pega pega”. Atualmente, todas as novelas da Globo trazem a luta contra o racismo em lugar de destaque. O que faz a turma — animada com a reunião na véspera do Dia Nacional do Zumbi e da Consciência Negra — se sentir vitoriosa.
— Estarmos os quatro no ar, em uma das maiores emissoras do mundo, debatendo esse tema com nossos personagens, é para se comemorar. Vivemos novos tempos — festeja David Junior, de 31 anos.
Erika concorda com o colega:
— Ter esse assunto em cada um dos horários, sem que ele seja coadjuvante, com uma mensagem forte, faz com que a população saiba mesmo o que acontece no dia a dia. Já ouvi gente dizendo: “Falar de racismo de novo? Toda novela tem isso...”. Se não existisse o racismo, não seria preciso pontuá-lo nas tramas, né? — afirma a atriz, de 32 anos, empolgada com a virada da personagem na novela das nove, que vai batalhar e se tornar uma juíza: — É importante esse momento para que as pessoas que passam por situação semelhante a de Raquel acreditem: “Eu posso!”.
Os novos tempos vislumbrados por David também são vistos por Heslaine, a caçula do quarteto. Aos 22 anos, a mineira de Ipatinga acredita que essa virada acontece mais do que se tem conhecimento.
— Somos exemplos de pessoas que estão dando essa reviravolta, e torço para que a vida de outros negros possa mudar assistindo aos nossos personagens. Tudo o que se vê na TV pode inspirar. Venho de uma família humilde, as meninas negras ao meu redor nunca imaginaram que, um dia, uma jovem do interior estaria na Globo as representando também. Acho que esses trabalhos estão nos proporcionando um espaço muito legal de diálogo com o público, de discussão — analisa a Ellen, de “Malhação”.
Representatividade, aliás, é um ponto de que os quatro atores, em coro, se diziam carentes: olhavam para a TV, há bem pouco tempo, e não conseguiam se ver retratados. O curioso é que, hoje, sentem que se tornaram exemplos para muitos.
— A referência que a gente tinha não só na TV, mas no cotidiano era totalmente diferente do que a gente representa hoje. Quando eu era adolescente em Nova Iguaçu, sucesso para meus amigos era o chefe do tráfico. Ele andava com os melhores carros, as melhores roupas, as melhores meninas... Ter a oportunidade de mudar essa atmosfera, essa verdade do povo do subúrbio, é bom demais. Ver que na TV tem negão dono de empresa, tem pretinha que será juíza — desabafa David.
Erika, inclusive, brinca com o intérprete de Dom contando que, ao vê-lo pela primeira vez em “Pega pega”, se impressionou.
— Quando vi que o figurino dele não era de motorista, pensei: “Opa, quem é esse cara?”. Ao encontrar David, disse: “Que beca, hein?”. Fiz questão de falar porque é um lugar (Dom é um empresário na trama das sete) diferente, a que a gente, infelizmente, não está acostumado. Tem que mostrar mesmo que o negro pode chegar aonde ele quiser.
‘Passei a vida alisando os fios’
Nascido em Nova Iguaçu e criado no Vidigal, Marcello Melo, de 30 anos, conta que já se preocupou em ser um modelo de sucesso para os mais jovens. Hoje, no entanto, está mais relaxado:
— É uma responsabilidade grande, da qual não tem como fugir. A gente vive um momento ímpar de empoderamento, de chegar a um lugar em que muita gente queria estar. Dar possibilidade às pessoas de buscarem isso na vida orgulha muito.
— Eu me achava feia, porque todo mundo dizia que meu cabelo era ruim. “Não vai arrumar esse cabelo?”, eu ouvia. Então, para me identificar com o padrão de beleza, passei a vida alisando os fios. Digo que minha profissão me deu maior consciência, abriu minha cabeça e me fez entender também que assumir a negritude é um processo de transformação interna — analisa Erika, que afirma ainda oscilar na autoestima: — Há um mês, estava ao lado de uma menina, quando alguém disse a ela: “Lourinha e de olho azul, você consegue o que quiser”. Aquilo me fez tão mal, foi lá no meu íntimo, onde está a raiz de todas as minhas questões. Não aceito mais. Hoje, sou o meu padrão. Quem quiser se identificar comigo, ótimo, vamos juntos.
Carinhosa, Heslaine a afaga, afirma que passou pelas mesmas questões e que a colega é sua referência. Marcello e David brincam que, quando a baixa autoestima atacar as meninas, devem ligar para os dois. E como o encontro virou uma grande sessão de psicanálise, o ator de “Pega pega” entrega que viveu um drama similar.
— Estudei em colégio particular e só tinha eu de preto na sala. Virei o melhor amigo de todas as garotas de quem gostava, porque sabia que só me viam assim. Não tinha coragem de me declarar — lembra David, que até os 20 poucos anos raspava o cabelo considerado “ruim”: — Hoje, acho irado quando sou abordado na rua, e os moleques perguntam como faz para ficar com o corte igual ao meu.
Os quatro concordam que os negros estão mais unidos e se olhando mais. No entanto, ainda é utópico crer no fim do preconceito.
— Somos a maioria da população, mas o Brasil é um país muito preconceituoso. O momento que vivemos remete à música “Beira da piscina”, do rapper Emicida: “Xô devolver o orgulho do gueto/ E dar outro sentido pra frase: ‘tinha que ser preto’”. Estamos conseguindo, com muita raça — arremata o esperançoso Marcello Melo.
Velhos estereótipos que ultrapassam os tempos
Alguns clichês ainda permeiam a vida dos negros. Como o de que mulheres negras são boas de cama. “Não é só homem que diz isso, já ouvi de mulher também. ‘O que vocês fazem, hein?’. E tem aqueles que querem a gente por nunca terem ficado com uma negra. É nojento”, diz Erika.
Heslaine vai além:
“E há os caras que ficam com você, mas não querem assumir uma relação. A solidão da mulher preta é real”.
Por ter irmã, David entra na discussão: “Os caras acham fetiche: ‘Preto tem sangue quente’. Mas, na hora de bancar o sentimento, rejeitam.”
O ator conta que também já ouviu a máxima de que todo negro é bem dotado. “Isso é balela. Eu me preocupo mais com os negros que morrem diariamente do que com uma coisa boba dessa”, dispara.
Tanto ele quanto Marcelo já namoraram mulheres brancas — David, inclusive, está há 12 anos, sendo seis de casamento, com a engenheira Camila Coimbra . Ambos concordam que sentimento não passa pela melanina: “A empatia , a vontade de estar com alguém, independe da cor da pele”, brada Marcelo.
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Redação iBahia
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