Manter a privacidade na era digital é um desafio. Corporações como Google e Facebook, coletam toneladas de dados pessoais para vender anúncios enquanto armas cibernéticas circulam na rede, ao alcance de hackers criminosos. Mas o espião também pode estar em casa, dormindo ao lado de suas vítimas.
Multiplicam-se no mercado digital empresas que oferecem aplicativos capazes de monitorar smartphones sem serem detectados por antivírus. Criados principalmente para o controle de pais sobre o celular de crianças ou de patrões sobre funcionários com aparelho empresarial, esses softwares começaram a atrair outra clientela: pessoas em relacionamentos abusivos interessadas em espionar os parceiros. Esse mau uso das soluções desencadeou um debate ético na indústria da tecnologia.
A diretora de cibersegurança da Electronic Frontier Foundation, Eva Galperin, é uma das principais vozes contra os chamados spousewares ou stalkerwares, os aplicativos desse tipo oferecidos na rede especificamente para a espionagem de parceiros amorosos. O ativismo dela começou em 2018, após a repercussão de uma mensagem que publicou no Twitter. “Se você é uma mulher que foi abusada sexualmente por um hacker que ameaçou comprometer os seus dispositivos, entre em contato comigo. Vou garantir que eles serão examinados apropriadamente”, escreveu.
— Esperava que a mensagem chegasse a algumas dezenas de pessoas, mas 16 mil curtidas e nove mil retuítes depois, percebi que o problema era de grande proporção — explicou Eva durante o Security Analyst Summit, evento promovido no mês passado em Cingapura pela produtora de antivírus Kaspersky. — Pessoas me procuram todos os dias, principalmente mulheres ameaçadas por homens.
Anúncios na rede
Sem conseguir atender a todos os pedidos de ajuda, Eva decidiu declarar guerra às empresas que oferecem esses softwares. Para identificá-las, bastou uma busca no Google. São dezenas que se escondem em ofertas de serviços de controle parental, mas muitas dizem abertamente o verdadeiro fim: “Monitore o celular da sua namorada sem ela saber”, diz um anúncio. “Acha que sua namorada ainda conversa com o ex?”, provoca outro.
Basicamente, esses softwares são malwares , que costumamos chamar de vírus, mas a comercialização é feita livremente porque a instalação requer acesso físico ao smartphone que será espionado, desbloqueado por senha, em aparelhos Android, ou à credencial de acesso ao iCloud, para iPhones. Não se trata de invasão virtual. O espião geralmente se vale da relação de confiança que há entre o casal e usa a própria senha da vítima para instalar o software que passará a municiar o parceiro com informações daquele celular.
— Por normas legais, você não pode espionar alguém. Entretanto, o monitoramento de telefone é possível se ele for seu — justifica um representante de uma dessas empresas, que prefere não se identificar.
A instalação do software é rápida, pode acontecer num descuido com o celular desbloqueado. Em iPhones, basta informar a senha do iCloud e praticamente todas as funções dos aparelhos são comprometidas. O abusador pode ouvir as chamadas telefônicas e ler as mensagens trocadas, inclusive por aplicativos criptografados, como o WhatsApp. Ele consegue ver fotos e vídeos, rastrear a localização, ler e-mails e acessar o histórico de navegação na web.
— Suas conversas, suas fotos, seus telefonemas. Smartphones são extensões da sua mente, e isso é muito atraente para abusadores — disse Eva.
Para o advogado Thiago Tavares, presidente da ONG SaferNet, ao menos no Brasil, o uso desses softwares é ilegal. Ele diz que o uso dessa ferramenta pode ser enquadrado no mesmo crime de interceptação telefônica, com pena de dois a quatro anos de prisão:
— Normalmente, são utilizados por stalkers , pessoas que têm interesse em monitorar o comportamento e a vida dos outros. O uso desses softwares demanda autorização judicial em casos de investigação ou consentimento expresso da pessoa monitorada. Não basta a senha de acesso ao aparelho.
‘Legais, mas imorais’
Eva tem a mesma opinião. Senhas e credenciais de acesso não podem ser consideradas consentimento para monitoramento, especialmente em situações de abuso. Geralmente, o abusador consegue convencer ou pressionar as vítimas a darem as senhas, ela diz. O material coletado muitas vezes alimenta chantagens no relacionamento ou após o fim.
— É muito comum conversar com pessoas que tiveram aparelhos e contas em redes sociais comprometidas por terem sido coagidas — contou a especialista. — Os abusadores fazem chantagem, dizem que se a vítima não informar a senha é porque está fazendo algo de errado. Em casos extremos, ameaçam e praticam violência física. O stalkerwares podem até ser legais, mas são imorais.
As vítimas têm poucas armas para descobrir a espionagem. Em smartphones Android, esses softwares não aparecem em ícones, apenas instalam um arquivo, com nome que se confunde com o de outros do sistema operacional. Em iPhones, os dados são coletados diretamente da nuvem. Programas antivírus, que deveriam identificar e neutralizar esses aplicativos, muitas vezes não cumprem essa função pelo fato de os stalkerwares serem instalados de forma aparentemente legal.
Na plataforma VirusTotal, um desses malwares foi identificado em apenas sete de sessenta antivírus. E quando detectado, foi classificado como ameaça “não-vírus”. Desde abril, o antivírus da Kaspersky alerta usuários quando as comunicações do aparelho estão comprometidas. A empresa já detectou 58,5 mil dispositivos infectados no mundo.
Para a psicóloga Luciana Nunes, do Instituto Psicoinfo, ferramentas como os stalkerwares ilustram o impacto das novas tecnologias em relacionamentos já problemáticos. Quando o ciúme extrapola os limites do razoável, parceiros apelam para técnicas de controle e monitoramento que se tornaram acessíveis com o avanço tecnológico dos últimos anos.
— Em relações saudáveis, cada um tem a sua vida e opta por ter uma vida em comum com outra pessoa. Não há posse, mas escolha — diz Luciana. — Casais que monitoram, que espionam o outro, não têm chances de darem certo. Não existe mais respeito, confiança e privacidade.
Entenda os ‘stalkerwares’ ou ‘spousewares’
O que os apps monitoram:
Mensagens trocadas por WhatsApp, Instagram, Snapchat, Messenger, Tinder, Skype e SMS. Também registram tudo o que é digitado nos smartphones e o histórico de internet. Dão acesso ao conteúdo de e-mails Google, Yahoo e Outlook, dados de localização do celular, chamadas , fotos e calendário.
Funcionamento:
Os programas espiões funcionam secretamente em aparelhos Android e em iPhones, com o pagamento de assinatura mensal pelo espião.
Detecção:
Alguns antivírus emitem alertas aos donos de aparelhos infectados. Entre usuários de soluções da Kaspersky, 58 mil foram contactados porque tinham stalkerwares instalados, sendo que 35 mil não sabiam disso.
Como se proteger:
Em aparelhos Android, bloqueie a instalação de aplicativos de terceiros. Use softwares antivírus que detectem os stalkerwares. Nunca revele a senha de acesso ao smartphone e ao iCloud (em aparelhos Apple) ao parceiro ou parceira. Manter algum grau de individualidade pode fazer bem não só à privacidade, mas também à saúde do relacionamento.
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Redação iBahia
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