Foto: Reprodução | Arquivo pessoal
Ele é um rapaz tímido, não gosta de ser visto. Ela é vibrante e extravagante, vive no centro das atenções. Ele é metódico, "cri cri". Ela é instintiva. Ele foge das inseguranças correndo para os braços dela. Apesar de serem completamente diferentes, convivem em um mesmo corpo. Nessa terceira edição, o Preta Bahia apresenta Vagner Cerqueira, artista baiano que dá vida à drag queen Ferah Sunshine.
Para Vagner Cerqueira, falar de si mesmo é um desafio. Nascido e criado no bairro da Liberdade, o publicitário de 34 anos se define como alguém muito tímido. "Por exemplo, quando eu estou desmontado, eu não quero que ninguém perceba que eu estou ali", afirma o artista. Essa frase nunca sairia da boca de Ferah Sunshine, personagem criada há 10 anos pelo publicitário. A Drag é inspirada em todas as mulheres negras que são espelhos para Vagner.
"Ferah é uma negona, ela vem desse campo das mulheres pretas que circularam minha vida. Desde divas americanas como Whitney Houston, Jennifer Hudson, Billy Holiday, até as mulheres daqui, que estão à minha volta. E eu venho de um bairro preto, onde as pessoas são muito acolhedoras. Então Ferah é muito composta por isso aí", contou Vagner.
Apesar de serem diferentes, não existiria Ferah sem Vagner, nem Vagner sem Ferah. Ao falar da personagem, o artista se emociona.
"Ferah me salvou diversas vezes. Se hoje eu estou vivo é por causa de Ferah. Eu não estaria aqui se não fosse a arte, se eu não tivesse essa drag, esse personagem, que me faz entender que eu preciso estar aqui, que eu preciso fazer as pessoas felizes. E fazer as pessoas felizes me faz feliz também. Isso me trouxe até aqui", afirmou o artista.
Vagner encontrou em Ferah uma maneira de fugir das suas próprias inseguranças, plantadas por um longo processo de rejeição durante a vida.
"Eu sempre fui uma criança gorda, na fase adulta também. Então existe esse campo de rejeição. Quando eu venho pro mundo da Ferah, é o momento em que eu fujo de tudo isso. Pelo menos dentro dos lugares que eu frequento, não tem rejeição, pelo contrário. Então é uma fortaleza, eu chego até a me emocionar", contou ao iBahia.
Do altar da igreja para cima dos palcos
Já na infância, Vagner demonstrava a veia artística ao olhar com curiosidade para as produções que consumia. "Essa iniciação na arte já veio na infância, quando me despertava a curiosidade em não só assistir, mas em entender os bastidores, o que acontece por trás...", afirmou.
Na igreja evangélica, Vagner encontrou espaço para por em prática a potência artística, participando de corais e grupos de teatro. Contudo, não demorou muito para a igreja se tornar um espaço que não comportava a grandeza do artista.
Ele conta que o processo de saída da igreja foi difícil, pois vivia inserido em uma bolha “cristã”. A mudança veio com o entendimento de quem ele era.
"A virada de chave foram os primeiros contatos que eu tive com outra pessoa do mesmo sexo. Na época, aquilo ficava muito no lugar do ‘pecado’. Nossa, como eu sofria. Chorava, me sentia culpado. Eu orava tanto a Deus, fazia jejum em prol dessa 'graça', de não me sentir mais atraído por homens”, contou o artista.
Com o tempo e com novas relações, Vagner entendeu que Deus o amava daquela forma, e o que era motivo de culpa, passou a ser motivo de orgulho. "Se fosse há alguns anos atrás, eu ficaria 'ai, não quero parecer viado'. Hoje não. Hoje eu tenho orgulho", afirmou o artista.
Rede de apoio
Após criar novas conexões fora da igreja, Vagner passou a aceitar a própria sexualidade, e as novas relações o aproximaram da arte queer. "Eu andava no meio das drags, nesse lugar de staff, até o dia em que minha mãe drag, Bia Mathieu, montou um concurso e me avisou que estava faltando uma drag. Então, ela me chamou e eu topei participar", contou ao iBahia.
Dali não nascia apenas Ferah Sunshine, nascia também a rede de apoio, uma reunião de pessoas que se entendem nas próprias vivências e se acolhem mutuamente, o que se transformou em uma família. Sobre essas relações, Ferah explica.
"É uma rede de apoio em todos os aspectos, de carinho, de amor, financeiro, de trabalho. Para mim, a família drag é uma rede de apoio para tudo", conta.
Além de ser filha, Ferah devolve o acolhimento que recebeu sendo mãe de outras drags. "No meu conceito, todas as drags que eu chamo de filhas, são no campo do amor, da aproximação do carinho. Muitos deles vêm precisando de carinho e de apoio e eu gosto, eu também sou uma pessoa carente e a gente vem nesse processo de rede de apoio", reflete a Drag Queen.
Muitas vezes, as famílias drag representam o acolhimento que as famílias biológicas não supriram por homofobia e incompreensão. Não existe substituição, mas existe a falta que muitos destes artistas comungam. No caso da família de Vagner, a relação foi mantida com um certo distanciamento. O artista assume que não cria expectativas em ter os pais na plateia, mas já se dá por satisfeito em manter uma relação de maior cumplicidade com a irmã.
"Eu falo sobre tudo com ela, ela frequenta minha casa, já foi nos meus shows. Hoje ela não vai mais, por ser cristã, mas conversamos sobre tudo. Nossa relação é maravilhosa", contou Vagner.
A arte da luta LGBTQIA+
Para que Vagner se transforme em Ferah, é necessária uma metamorfose de 1h a 1h30 de trabalho. Ao falar sobre esse processo, Vagner se emociona.
"Para mim é um momento mágico, é o momento em que você veste a armadura né? Que você está se fortalecendo para levar amor, alegria e informação. Então, você vai deixando todos os seus problemas para trás. Você está se unindo e se fortalecendo para ir a uma batalha. É uma batalha colorida, mas é uma batalha", contou o artista.
Na verdade, esta é uma batalha coletiva. Ao analisar as conquistas para a comunidade LGBTQIA+, Vagner defende a importância e a representatividade das "bichas afeminadas".
"Todas as conquistas que a comunidade LGBTQIA+ têm hoje são justamente por causa das bichas afeminadas. Uma bicha camuflada de hétero, ela só salva a ela mesma. Se salva de retaliações de preconceitos. Ela transita no campo dos héteros porque ela não é incomodada", reflete o artista.
Já o processo de desmontagem, o qual Ferah volta a ser Vagner, é definido pelo artista como um momento de "alívio", afinal é o retorno da batalha. O publicitário entende que o trabalho artístico não existe apenas para entreter, mas principalmente para informar e fazer política, considerando que o Brasil é o país em que mais se mata LGBTQIA+ no mundo.
Entretanto, a luta de Vagner não se resume aos palcos de Ferah. Como homem negro, gay, ele luta contra as estatística todos os dias. Na última terça-feira (15), o publicitário tomou posse da cadeira de membro do Conselho Municipal de Política Cultural de Salvador (CMPC).
"Eu quero de toda e qualquer forma contribuir para a classe artística como um todo, mas eu pretendo puxar a sardinha para a cultura queer. Eu quero estar lá para ajudar, observar, poder opinar, chamar atenção. É para isso que eu estou lá. Fortalecer uma pessoa que é LGBT, que faz arte drag. Levantar essa pauta", refletiu.
Mas a trajetória política de Vagner começa antes da posse, há quase cinco anos. Ele, enquanto Ferah, faz parte do Coletivo Bonecas Pretas. Para ele: "o coletivo é responsável pela minha consciência política, de entender o que eu já fazia, sem saber. Entender que eu não sou só circo. Entender que um microfone na mão, você tem um poder. A gente faz entretenimento, mas a gente também passa a mensagem e dali as pessoas saem informadas e multiplicadoras daquela informação", defende.
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Redação iBahia
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