Eu não estava na fila do banco ou do INSS. Estava tentando enterrar minha tia. Uma tia fictícia, é verdade, mas não deixava de ser minha tia. Cheguei ao Cemitério da Quinta dos Lázaros, na Baixa de Quintas, às 6h da última terça-feira. Não sabia que, numa cidade tão fácil de se morrer, seria tão difícil ser enterrado. Na tarde anterior, liguei para o cemitério. Uma funcionária atendeu e, sem o menor pudor, confirmou a denúncia que recebi durante a greve dos coveiros, semanas atrás. “O senhor tem que vir cedo. Só distribui seis fichas”, avisou ela, como se eu estivesse tentando fazer um RG no SAC. “Ah, distribui senha, é?”, perguntei. “É... Meia dúzia”. “E se eu chegar aí e já tiver acabado?”. “Aí eu não sei nem o que eu te digo. Tem que ‘vim’ cedo pra pegar a senha”, insistiu. Mas, antes de desligar, a mulher fez questão de destacar um dos pré-requisitos básicos para ter acesso à ficha. “Tem que ser da família. Funerária não está mais agendando, não”. “Ah, não? Porquê?”. “Porque tinha funerária que tava até colocando nome de gente viva para guardar vaga”. Bom, além da humilhação de lutar por uma senha para enterrar minha tia, pelo menos não iria disputar com os vendedores de caixões. Na madrugada seguinte, passando-se por parente de um falecido, equipado com uma microcâmera escondida, foi possível flagrar mais que a distribuição de senhas. Um esquema envolvendo funcionários do cemitério priorizava exatamente as funerárias. Ainda estava meio escuro, mas cheguei dando bom dia. A recepção foi do lado de fora, de pé, sem poltrona, sem consolo pela morte de titia. “Só começa a distribuir 7h”, disse um funcionário no portão de entrada. Já havia fila. Respirei aliviado ao fazer a contagem. Ufa, eu era o quinto. Pouco a pouco, os representantes das funerárias foram chegando. Mostraram intimidade com seguranças e funcionários da Quinta. Brincaram entre si sobre as senhas. “Só não pode perder esse papelzinho amarelinho. Aí é problema”. Mas, no meio da fila, havia também famílias.
Impossível não se sensibilizar com a situação de duas senhoras. Elas saíram do bairro de Tancredo Neves às 3h. Uma delas tentava enterrar o irmão. Além da dor da perda, estava preocupada com os papa-defuntos. “Não saí de casa cedo para ver funerária guardando três, quatro, cinco vagas”. Um homem chegou tentando enterrar um parente. Sequer tem direito de entrar na fila. “Pelo que eu tô vendo já passou a quantidade aí”, disse o funcionário. Sem senha, em vez de usar a cova rasa, teve que desembolsar R$ 700 por uma ‘carneira’, aqueles jazigos em forma de gaveta. “É uma humilhação”, disse ele. Hora da distribuição das senhas. Tudo é muito rápido. Não há chamada. De camisa branca, um outro funcionário do cemitério, sempre de cabeça baixa, abre a porta da administração e entrega pedaços de papel para alguns. Descubro que é o homem das senhas. Vou questionar, mas não adianta. Fico de fora. Todas as três funerárias, mesmo a que chegou depois de mim, receberam senhas. “Você perdeu, você perdeu”, foi o que ouvi. Outro parente de falecido chegou naquela hora. “Já acabaram as senhas, senhor”, foi o que ele ouviu. “Então posso mandar uma funerária aqui amanhã reservar?”, perguntei. “Não, funerária não pode. O homem mandou ofício proibindo”. Fiquei indignado. “Mas hoje teve funerária aqui e você entregou senha”. Sem ter o que dizer, o funcionário só despacha. “Agora você tem que levar para outro cemitério. Tem Brotas, Plataforma, Periperi”. Vendo aquilo, um antigo vendedor de flores ficou revoltado. Ele testemunhou as três funerárias reservando suas vagas sem fazer esforço. “Entrou as três funerárias aqui fazendo reserva, mano velho. Você pode passar para sua funerária”, aconselhou. “Mas eles disseram que não pode”. “Como é que não pode? Tinha um carro verde, tinha a Kombi, tudo fazendo reserva aí hoje de manhã”. “Não tinha?”, perguntei. “Então...”, confirmou. Enfim, a senhaA luta para conseguir a senha continuou no dia seguinte. Dessa vez, o repórter Rafael Rodrigues chegou mais cedo e conseguiu ficha para sepultar sua avó fictícia. Foi um dia em que a morte parecia de férias. Pouca procura na porta. Sorte. O CORREIO pegou a senha número dois. Teve que insistir para conseguir o papel com a marca do cemitério. Só ficou tranquilo quando ouviu: “A sua tá garantida”. As funerárias estavam por perto. Um funcionário confirmou que está por ali todo dia. “Todo santo dia. Vou mandar o cliente vir pra aqui?”. Mesmo tendo vagas para todo mundo, um deles parecia de olho nas reservas dos que ainda morreriam. E pediu para um colega para garantir outra senha. “Vou deixar você para reservar isso aí. Entendeu?”. “Vou sair. Tenho que viajar”, desconversou o rapaz. Funerárias confirmam esquema Basta ligar para as funerárias que funcionam próximo ao Cemitério Quinta dos Lázaros para confirmar o quanto é fácil para elas a reserva de covas. Novamente passando-se por parente de falecido, um repórter do CORREIO consegue a garantia de três delas para ter acesso às senhas das covas rasas. Um funcionário da Funerária Pax, que fica próxima ao cemitério do estado, disse que conhece os funcionários responsáveis por distribuir as senhas. “Eu vou garantir isso pra você. Você fechando comigo...”. A Funerária Caminho da Saudade, nos Mares, também não enxergou dificuldade. “Você vindo aqui na funerária pra fechar negócio comigo a gente resolve isso aí”. A Funerária Girassol, no pé da ladeira que dá acesso à Quinta, disse que “daria um jeitinho”. “Amanhã 5h tô lá em cima para fazer sua reserva. Tem senha, mas conheço o pessoal lá. A gente dá um jeitinho”. 'Não damos conta', admite coordenador O coordenador do Cemitério Quinta dos Lázaros, Manolo Dominguez, confirma a distribuição de senhas para quem precisa enterrar os corpos de seus familiares. “Isso sempre aconteceu porque não damos conta da demanda. Cada coveiro só pode abrir duas covas por dia porque é um trabalho muito pesado. Leva cerca de duas horas e meia para abrir. Como só temos três trabalhando e um de licença médica, só podemos distribuir seis fichas”, afirma. Dominguez revela ainda que antes tinham seis funcionários no cemitério e podiam realizar 10 enterros por dia, mas ressalta que o quadro não está completo porque atualmente é difícil encontrar quem queira trabalhar como coveiro. “É uma profissão em extinção. Não sei dizer por que, mas está cada vez mais complicado conseguir contratá-los”. Apesar do CORREIO ter gravado e fotografado representantes de diversas funerárias no local reservando covas antecipadamente e oferecendo lugar na fila em troca de vender seus serviços, o coordenador do cemitério garante que não existe esquema de venda de senhas. “Tudo não passa de boato. Se isso fosse verdade, os interessados estariam na minha sala todo dia ”, defende. A Secretaria Estadual de Saúde (Sesab), não se pronunciou sobre o caso e também não informa quando serão contratados novos coveiros. Greve de coveiros parou cemitério No início do mês, uma greve comandada pelo Sindicato dos Trabalhadores em Limpeza do Estado da Bahia (Sindilimp) reduziu o número de enterros realizados na Quinta dos Lázaros. A empresa White Limp Empreendimentos e Serviços de Manutenção, terceirizada responsável pela contratação da maioria dos funcionários, chegou a ficar quatro meses sem depositar salários. Só os funcionários contratados pelo estado trabalhavam. À medida que os salários eram pagos, os coveiros terceirizados realizavam operação padrão. Se antes eram realizados dez enterros por dia, o número caiu para três. A Quinta dos Lázaros tem dez coveiros, cinco por plantão. A White Limp, que atua no cemitério desde 2008, é responsável por seis e o estado por quatro. Hoje, a Quinta realiza seis enterros por dia. Com uma área de 52.500 m², o maior problema do cemitério é a falta de espaço para os sepultamentos.
Cemitério da Quinta dos Lázaros só faz 6 enterros por dia; funerárias reservam vagas |
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