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Usuário de crack tenta cobrir o rosto com saco plástico. Mas estrago é visível |
O homem da foto aí de cima bem que tentou disfarçar. Mas é impossível esconder uma das faces mais degradantes e tristes dessa cidade. Por mais escuro que seja o local, por mais que se tente encobrir a realidade, as luzinhas continuam acesas e se multiplicam por aí, como vaga-lumes do mal a iluminar olhares que parecem feitos de pedra.
Um ano depois de mapear os principais pontos de consumo de crack em Salvador, o CORREIO voltou a circular nas madrugadas da capital baiana. O que identificou foi um aumento do número dos chamados “sacizeiros” ou “zumbis do crack”, além da pulverização dos locais onde se concentram pessoas que usam a droga. Alguns deles ganharam a conhecida alcunha de cracolândias, antes restritas a duas ou três ruas do Centro Histórico.
Ano passado, a partir de flagrantes, informações de moradores e conversas com os próprios usuários, 12 lugares entraram na lista de locais onde havia “sacizeiros”. Dessa vez, além daqueles, outros oito foram identificados, somando 20 no total. Nem todos podem ser chamados de cracolândias, já que não concentram um grande número de pessoas.
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Não há levantamentos oficias sobre consumo de crack nas ruas, o que é uma das várias evidencias de que essa gente é tratada pelo Estado e pela sociedade como escória. Segundo o psiquiatra da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e coordenador dos chamados consultórios de rua da prefeitura, Antônio Nery Filho, houve apenas uma pesquisa, realizada em 2009, onde foram identificados 19 mil moradores de rua na cidade. Entre eles, os usuários de crack se mostravam os mais desvalidos. “São os excluídos dos excluídos”, define Nery.
Sem números, a única certeza é que vai longe o tempo em que apenas a Ladeira da Independência e as ruas do Gravatá e 28 de setembro eram usadas para o consumo. Hoje, há cracolândias em locais como Dois de Julho, Praça Cayru (Comércio), e rua Carlos Gomes, sem falar nos locais que não estão no centro. Muitos deles em áreas nobres, como a rua Minas Gerais, na Pituba.
Por preferirem locais onde se consegue dinheiro fácil, os usuários costumavam manter-se longe da periferia e dos bairros pobres. Mas isso começa a mudar. Hoje, até mesmo no Subúrbio o crack é usado nas ruas. Em Paripe, na localidade do Bate Coração, há um local que os moradores chamam de cracolândia.
Em relação ao ano passado, impressiona a multiplicação de usuários. No Dois de Julho, a quantidade de zumbis assusta, a ponto de os famosos bares Líder e Mocambinho terem se tornado ilhas cercadas de craqueiros.
Ali foi feita boa parte dos flagrantes fotográficos. Apesar da escuridão, os fotógrafos captaram cachimbos luminosos também em Nazaré, no Gravatá, na Praça Cayru, próximo ao Elevador Lacerda, e na Carlos Gomes. Na famosa via do Carnaval, um grupo de sete pessoas dividia uma lata de Skol feita de fogareiro para acender os cachimbos.
O Largo de São Bento, a Ribeira e a Estação Pirajá são alguns dos locais que entraram na lista. “Eles dormem de dia para aprontar de noite”, diz a dona de uma lanchonete na estação. Por incrível que pareça, relatos de assaltos e outros crimes graves são raros. Moradores e comerciantes falam apenas em confusões e pequenos furtos.
Na Barra, onde eles continuam a perambular principalmente pelo Porto e rua Afonso Celso, o dono de um restaurante é um dos que defende que sacizeiro não é criminoso. “Ficam para lá e para cá. Mas, quer saber de uma coisa? Eles não fazem mal a ninguém, não. O que afasta os clientes é o aspecto decadente”.
Na Praça Almeida Couto, em Nazaré, os sacizeiros continuam convivendo sem maiores problemas com os moradores. “Com a gente eles não mexem, não. Quando brigam, é entre eles”.
As brigas, realmente, são muito comuns. Em apenas uma noite, a equipe de reportagem presenciou duas. Uma no Pelourinho e outra na Barroquinha. O motivo? Crack.
O crack vai se instalando como problema crônico na sociedade. Conversas com usuários mostram que a pedra é um dos vícios mais difíceis de largar. A vida trivial antes do crack é sempre algo distante. “Eu era do Circo Picolino. Tinha 11 anos naquela época. Aí meu pai foi assassinado e minha mãe ficou maluca. Caí na pedra e estou até hoje”, contou Vicente Jesus dos Santos, 18 anos, que fazia malabares na sinaleira do Campo Grande.
Com os trocados, o menino que morava na Fazenda Coutos compraria e fumaria pedra no Dois de Julho, onde costuma perambular. “A pedra lá é R$5. Me arruma uns R$3 aí”.
Assim, do Centro Histórico à Pituba, da Barra à Itapuã, o crack vai transformando Salvador na cidade da pedra.
'Não existe epidemia', diz professorO homem que hoje arregaça as mangas e vai às ruas de Salvador tentar mudar a vida de usuários de crack faz isso desde a década de 1980. Atual coordenador dos chamados Consultórios de Rua - projeto que a prefeitura desenvolve em parceria com a Secretaria Nacional de Política Sobre Drogas (Snad) - o psiquiatra e professor a Ufba Antônio Nery Filho se recusa a falar em avanço do crack na cidade. Para ele, a tão falada “epidemia” da pedra nada mais é que uma criação da mídia.
“Não há o aumento que se alardeia. O que houve é que a mídia descobriu o crack, que sempre se restringiu a um grupo de excluídos. ‘Cracolândia’, no sentido que usa a palavra, só existe em uma determinada região do Centro Histórico”. Mais adiante, porém, o professor admite que há aumento de consumo, mas os números não seriam absolutos. “Aumentou porque cresceu a população e, principalmente, cresceu a miséria. Não é o crack que avança, o que avança é a miséria”.
Nos consultórios de rua, Nery vai aos locais de consumo de drogas com uma equipe multidisciplinar. Atua no Gravatá, Baixa dos Sapateiros e São Joaquim. Nos consultórios, diz Nery, cuida-se das pessoas e não só das drogas. “Não é a droga que leva para a rua. Em geral, é a rua e a miséria que impõem o uso da droga para facilitar tal vivência. Por isso, antes de cuidar da droga, cuidamos de outras questões da vida da pessoa”.
O modelo de consultório de Nery, criado na capital baiana em 1995 e interrompido em 2004 por falta de recursos, hoje é retomado e implantado em outras quatro capitais do país. Além dos consultórios, o serviço público dispõe também dos Centros de Atenção Psicosociais Álcool Drogas (Caps-AD) para cuidar de usuários de crack. Há dois deles em Salvador: um em Pernambués e outro em Campinas de Pirajá.