“Hoje vocês se lascam comigo. Tô com Exú no corpo, sinhas miséra!”, grita um atleta de final de semana, no campinho de Periperi, antes do baba começar. Prontamente, recebe uma resposta do seu possível adversário: “Minha chibata! Você, no máximo, é uma pomba gira. Hoje, bato até na minha sombra, sua nigrinha!”. E assim está decretado mais um fim de semana de futebol em Salvador.Bater baba faz parte do cotidiano de boa parte dos soteropolitanos. Existe aquela moquequinha que vê como perda de tempo se juntar aos coligados para um futebol de boa, sem fins lucrativos, podendo ser jogado em qualquer lugar. Mas a verdade é que esses dão migué pra não reconhecer que são uma carniça. E não me venha dizer que vai jogar uma pelada. Em Salvador, a gente não joga. A gente bate. E pelada aqui é apenas uma mulher despida. Aqui, o futebol informal se chama baba. O jogo é democrático. Pode ser jogado debaixo do viaduto da Bonocô, no canteiro da Ogunjá, na ladeira do Aquidabã ou na praia do Farol da Barra. Basta ter alguns metros quadrados disponíveis, quatro sandálias para demarcar os gols e meia dúzia de amigos para o pau quebrar até umas horas. O baba, porém, não é feito só de armengue. Também tem muita tradição.
Garotos se protegem de sol encostados, mesmo com sol a pino, tem baba na quadra do Rio Vermelho |
Aos 84 anos, Osvaldo Nascimento acorda cedo para um compromisso que já dura 69 anos. Com seu tênis de futsal e uma costela ainda machucada, o veterano centroavante se despede de seu filho com uma frase que se repete três vezes na semana: “Vô batê meu baba!”. “Ô, vei, você ainda está barreado”, diz o filho, recebendo a tréplica do pai: “Já cheguei a jogar com três costelas quebradas. Se eu parar com meu baba, pode me enterrar”.
No Campo do Lasca, na Ribeira, Osvaldo se transforma em Sofredor. A alcunha não é porque torce para o Ypiranga, mas pela perseguição em campo. “Até hoje apanho. Fiquei um mês internado por conta de uma costela quebrada aqui. Esses meninos aí (neste momento, aponta para senhores de 60 anos) adoram descer a madeira. Vi todos nascerem, mas ninguém respeita o craque aqui. Zelito está aqui e não me deixa mentir”, aponta para o amigo. “Meu sonho sempre foi lascar ele todo na porrada. O problema é que sempre joguei ao lado dele, para sorte do sacana. Essa miséra sempre foi ousado. Merece tomar sarrafo mesmo”, completa Zelito, que se diz o melhor amigo de Osvaldo.
Na sua coxa, Osvaldo mostra a prova de quem sempre levou porrada. “Uma vez, fizemos um amistoso com o Flamengo de Moela, lá em Lauro de Freitas. Eu era menino, devia ter uns 50 anos. O jogo estava 0x0, quando peguei a bola, driblei o zagueiro e o goleiro. Porém, não fiz o gol. Tinha que humilhar, né? Voltei para driblar o outro zagueiro e só depois fiz o gol. Um cara me lascou todo com o birro de prego. O pau quebrou. Enterrei o baba”, lembra Sofredor, com um sorriso no rosto e mostrando a cicatriz.
Sofredor é um dos pioneiros no Lasca. Ele lembra como o campinho ganhou a fama. Há 50 anos, o local onde hoje tem o campo de barro era um brejo. A maré alta da Ribeira chegava nas mediações. Com o aterro no local, surgiu o campinho. “O problema é que aterraram aqui com entulho. No entulho tinha de tudo, incluindo vidro. Na época, todo mundo lascava o pé sempre que jogava, daí o nome”, lembra.
O campo do Lasca é um dos únicos na cidade que possui baba de segunda a segunda. Um campinho que honra a denominação de futebol popular em Salvador. Reza a lenda que a denominação de baba foi dada porque o futebol em Salvador só terminava quando a baba começava a descer do canto da boca, prova de que o corpo já não suportava tantas horas de futebol. Para evitar o desmaio, a maioria dos atletas apelam para a cerveja pós-baba.
É como um terceiro tempo. Se tem um campinho, é lei ter um bar como anexo para recuperar as calorias perdidas. “Basta terminar o baba para começar a farofada. Mas eu fico na minha. Só me aproximo quando vejo alguma nega no bolo dando mole. Muita mulher vem ver a gente jogar. Aí vou, pago uma cervejinha e levo ela pra minha casa. O baba continua lá”, completa Osvaldo.
O pós-baba também é conhecido como resenha. Basta ficar 15 minutos para se fartar de uma leva de histórias. “Uma vez passei três semanas sem dar as caras no baba. Para minha esposa, eu continuava vindo. Eu tinha arrumado uma mulher na rua e usei o baba para dar aquela escapada. Quando voltava para casa, colocava a roupa do baba e começava a me embolar no chão da garagem para suar e ficar todo sujo. A mulher nunca desconfiou”, conta um jogador do baba da Boca do Rio, que pediu o anonimato, por motivos óbvios.
Registro
É difícil saber quantos campinhos ou babas existem em Salvador. Fabrício Gondim da Silva até tenta. No meio dos amigos, ele teve a ideia de fazer um site com o cadastro de alguns babas da cidade e região metropolitana. O sucesso foi tanto que até um programa para celulares Androids foi feito para que todos acompanhassem os principais babas da região. “A integração da galera, a resenha, é uma válvula de escape para qualquer problema. No nosso aplicativo chegamos a ter o cadastro de 180 babas, espalhados em 80 campos pela cidade, com registro até de artilheiros em cada jogo”, disse Fabrício.
O registro de Fabrício é modesto. É um trabalho de corno da zorra, mas é possível ver a quantidade de local destinado para a prática de futebol em Salvador. Basta abrir uma foto de satélite no Google e começar a contar. Tem mais campinho que chuchu na feira, véi. Foram necessários três dias para identificar 374 campos em Salvador, via satélite. São dois campinhos a mais que o número de igrejas na cidade histórica, segundo contagem oficial da Igreja Católica. O baba, de fato, é uma religião.
Torcedores e narradores utilizam jargões baianos
Uma tarde de domingo, o Vitória jogava no Barradão. Um jogador rubro-negro parecia não estar no seu melhor dia, caindo muito em campo e demonstrando pouca vontade de jogar. Já impaciente com o atleta em questão, o narrador João Andrade larga no microfone: “Tira a cueca do rego e vem pro jogo, carniça!”. A bola rolava. Este mesmo jogador, de repente, tem uma chance de fazer um gol. “Queime minha língua, sua miséra!! Broca, broca... Brocôôôô! Gooooool... Do Vitória! Agora, Vitória tem um, Paysandivis não tem nada!”, completa João, também conhecido como O Pressão no Turbo.
O narrador baiano demonstra na sua narração o que é dito nas arquibancadas de Salvador. Torcedor de Bahia ou Vitória possuem linguagens únicas, com o poder de mudar nome de equipe que possa comprometer sua sexualidade. Como João Andrade frisou na narração acima, o clube paraense, Paysandu, em Salvador, por questões de rimas maliciosas, se transforma em Paysandivis. E o trocadilho é o ponto chave das arquibancadas. “Narro como o torcedor fala nas arquibancadas. São estes jargões que o povo gosta, se identifica”, diz João Andrade.
No meio da transmissão, João também tem um jeito peculiar de distração do seu ouvinte. Se o jogo está nervoso ou muito chato, o Pressão no Turbo interrompe a locução e grita: “Lembre-se sempre, galera! Casamento é igual a submarino. Pode até boiar, mas foi feito pra afundar!!!”, larga. “São frases de efeito, com trocadilhos. Nos pontos de táxi, enquanto a galera ouve o rádio, todos aumentam no momento do lembre-se sempre. Recebo vários e-mails com sugestões de frases. Adoro esta: “Lembre-se sempre, galera! Funcionária de açougue foi demitida porque deixou a maminha de fora!”, conta, aos risos.
O narrador confessa que seus jargões saem, na maioria das vezes, da própria arquibancada. Porém, muitas vezes o caminho é inverso. “Muitas coisas que eu falo acaba virando febre entre os torcedores. Uma vez um jogador fez um golaço. Eu larguei: Jogada de videogame! Pronto. Basta qualquer pessoa, seja no baba ou em jogo oficial, fazer uma jogada bonita ou um golaço para alguém repetir a ‘jogada de videogame’”, completa João.
Glossário
Se lascam: irão sofrer as consequências de um ato alheio
Sinhas miséras: suas misérias, um tipo de denominação pejorativa.
Chibata: órgão sexual masculino
Bato até na minha sombra: Uma ameaça, dizendo que vai bater em todos no baba.
Nigrinha: Mulher assanhada, sem pudor
Bater um baba: jogar bola
Vagal: vagabundo
Carniça: o pior jogador do baba
Até umas horas: não tem hora para acabar
Armengue: algo mal feito, no improviso
Barreado: debilitado
Descer a madeira: bater
Tomar sarrafo: apanhar
Pau quebrou: briga generalizada
Enterrei o baba: Acabou com o jogo
Farofada: gente reunida comendo todo tipo de coisa
Nega no bolo: mulher nas mediações
Dando mole: Pessoa disposta a paquerar com você
Cabulosa: misteriosa, estranha
Dar as caras: aparecer, comparecer
Trabalho de corno: algo difícil e complicado de fazer
Que chuchu na feira: Modo comparativo exagerado para denominar quantidade
Baba – Jogo amador de futebol realizado em Salvador ou região metropolitana, seja em campo de grama, barro, areia, asfalto ou qualquer lugar que você conseguir. Também pode ser usado de forma pejorativa, principalmente quando Bahia ou Vitória estão uma carniça. Ex: Zorra, este Ba-Vi tá um baba hoje.
Na mesma – Serve como recado para o colega durante o baba, quando você toca para ele e, imediatamente, pede a bola de volta em passe rápido e curto. Não tente fazer esta troca de passe com seu colega carroceiro.
Firula – Quando um cara enfeita demais no baba. Geralmente, estes jogadores jogam com alguma camisa de time europeu, principalmente o Barcelona. Quer driblar toda hora, acha que está fazendo um espetáculo. Enfeita mais que malabares de sinal.
Mascarado – Firula piorado. É o cara que faz firula e ainda acha que é dono da bola. Não toca para ninguém e só pensa nele. Acha que é Messi, mas não passa de um Apodi piorado.
De calcanha – Tocar ou fazer um gol com o calcanhar.
Tabaca – Um ato de habilidade, quando você consegue passar pelo adversário metendo (lá ele) por debaixo das pernas do seu oponente. Só terá êxito se conseguir pegar a bola do outro lado.
De fora é minha – Quando o baba já está rolando e você quer jogar. Educadamente, você primeiro pergunta: tem de fora? Caso a resposta seja positiva, você pode completar: de fora é minha! Caso tenha outras pessoas aguardando, retifique: a última de fora.
Mão-de-quiabo: Goleiro ruim, que a bola passa feito quiabo por ele.
Delegado: Ler mascarado
Na cocó: O cara que faz uma dura entrada no adversário, geralmente de propósito, machucando o oponente. Também é usado quando se recebe um lançamento muito longo e você precisa se matar todo para alcançar a bola. Ex: Você tocou na cocó!
Carroça ou carniça: O último escolhido no baba. Aquele que só entra na primeira partida se for o dono da bola. É o cara que poderia escolher facilmente outro esporte, mas prefere insistir no futebol.
Brocar: ato de fazer o gol. Quem muito broca, se torna o brocador do baba.
Clareou: Quando você está perto do gol adversário e os zagueiros deixam uma brecha para chutar no gol.
Bicuda: Chute forte. Nos babas de criança é uma ação proibida, passivo de punição ou anulação do gol. Ex: Não valeu, foi de bico! (ou bicuda)
Zero A: Quando ninguém consegue fazer gol no baba, que termina empatado em 0x0.
Dois ou dez: A primeira regra do baba quando existe “de fora”. Significa que o confronto termina quando o primeiro time fizer um gol ou o duelo passar dos dez minutos. Caso o último regulamento ocorra, o desempate ocorrerá na última bola fora ou no par ou ímpar. O tempo pode variar.
Bola fora: quando o tempo regulamentar acabar (geralmente 10 minutos), o confronto continua até a bola sair pelas laterais pela primeira vez. Linha de fundo só acaba se for tiro de meta. Caso seja escanteio, segue o baba.
Banho de cuia: Passar pelo adversário metendo a bola por cima dele e pegando do outro lado. No Sul, é conhecido como chapéu ou lençol.
Na banheira: Como no baba não existe impedimento, banheira é aquele atacante que não volta para ajudar os colegas da defesa. Fica plantado no ataque, só esperando a bola chegar nele.
Agreste ou grosso: Pode ser confundido com carniça, mas não é. O agreste/grosso geralmente é o cara que bate até na sua sombra. Geralmente é uma alcunha dada aos zagueiros, que considera normal bater entre o pescoço e a canela do adversário. Quase um lutador de MMA com meião.
A vera: Um baba sério, geralmente apostado. Quase sempre termina em pancadaria generalizada.
Um dois: ler ‘na mesma’
Nó: a mesma coisa de drible.
Resenha: confraternização pós-baba. Geralmente regado a muita cerveja e churrasco, é a hora de eleger a jogada mais bonita, o pior do baba ou o que ocorrer.
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