Ele estava ainda na 3ª série quando escutou de sua mãe palavras que iam guiar sua luta pelo direito à Educação durante anos. Estudava matemática, disciplina em que sempre teve um pouco de dificuldade, quando fraquejou por um único instante: "Mãe, eu não vou conseguir!". De prontidão, ouviu a resposta: "Você vai conseguir sim! Porque eu sou uma ursa e vou te levar nas costas até você ter forças para seguir sozinho!"
Essa história poderia fazer parte de qualquer repertório familiar. Afinal, quem nunca apresentou dificuldades em uma disciplina ou outra na escola? Só que esse caso pertence à memória da família de Nilda Maria Ramos Moreno, mãe de Jorge Octávio Alves Moreno Neto, 20. E à época, eles não tinham como imaginar a importância que esse momento teria para suas vidas. Não até que Jorge conquistasse as forças de que precisava para lutar por seu sonho.
Mas a história de luta dos dois começa um pouco antes, quando, aos três anos de idade, Jorge foi levado por Nilda para ser avaliado por uma equipe multidisciplinar de médicos. Foi então que eles descobriram que Jorge era portador de necessidades especiais. Em relatório recente, a médica Christiana Profice afirma que ele apresenta um quadro de "distúrbio global do desenvolvimento de etiologia indeterminada, com provável componente genético que não pode ser identificado".
"Aos 3 anos ele não sabia diferenciar som de nenhum animal. Malmente reconhecia. E até os 8 anos se referia a si mesmo como 'ele'", explica Nilda, descrevendo traços autísticos que observava no comportamento do filho. Apesar do diagnóstico, Jorge sempre insistiu em ser o que sabia que era: normal. Era uma criança comunicativa, brincava e brigava com os irmãos Bianca, hoje com 20 anos, e Camilo, 15, além de sempre se sentar com a turma do "fundão" na sala de aula.
Jorge (à esq.) com sua mãe, Nilda (em pé) e o restante da família |
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Nilda explica que o jeito carismático do filho impediu que ele sofresse com o bullying na escola. Apesar disso, ela se recorda de um caso em que Jorge foi chamado de debilóide por um colega. "Aí ele falou: 'Eu não sou não, porque eu não tenho nenhuma anormalidade no cromossomo 21, porque eu já fiz exame. E você, sabe o que é? Um filho...'", conta a mãe. Apesar de reconhecer a má conduta, Nilda afirma ter ficado satisfeita ao ver seu urso se defendendo sozinho. "A primeira vez que eu fui chamada para a escola porque Jorge deu uma resposta, você não imagina a minha felicidade", brinca.
Jorge quer ser comentarista esportivoMas o que realmente fez ele despertar para o mundo foi uma das maiores paixões nacionais: o futebol. Torcedor ferrenho do Vitória, o urso aprendeu com o Leão todas as táticas, lances e estratégias e, nessa partida, tomou a posse de bola da própria vida. "Jorge começou a gostar muito de futebol", relata Nilda, "E cresceu se educando através dele, da televisão, do rádio e dos repórteres. Ele mesmo falou: 'Mamãe, eu quero fazer Comunicação, porque eu quero ser comentarista esportivo'.
Jorge então se aplicou nos estudos e se esforçou para dominar até mesmo a matemática. Em 2011, superou com sucesso o Ensino Médio e se formou com direito a homenagem dos colegas. Mas o urso, claro, queria ir mais longe. E foi seguindo o caminho para o ensino superior que Jorge recebeu o primeiro cartão amarelo.
Residente em Ilhéus, no sul da Bahia, Nilda inscreveu o filho para prestar vestibular na Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc) no ano passado. Como deficiente intelectual, ele teve direito a fazer a prova em uma sala separada e com o auxílio de um computador. Ainda assim, Jorge não conseguiu obter a aprovação.
Com base na Lei 7.853/89, que dispõe sobre os direitos dos deficientes à Educação inclusiva, dentre outros, Nilda chegou a entrar na Justiça para driblar o resultado do vestibular. Apesar disso, não teve êxito. Ao CORREIO, a Uesc informou que a prova do vestibular aplicada é a mesma para todos os candidatos e que assegurou a Jorge todos os instrumentos necessários para realizá-la, mas ele não foi aprovado porque não obteve a pontuação necessária.
Após receber a notícia, Nilda decidiu mobilizar a comunidade de Ilhéus em busca de mudanças. Ela fundou um grupo no Facebook intitulado "Jorge Otávio quer entrar na faculdade. Inclusão Já!", que hoje conta com quase 12 mil integrantes. Lá, ela compartilha detalhes das conquistas e dificuldades vivenciadas pelo filho e recebe o apoio de dezenas de outras pessoas que dão suporte à causa.
Nilda defende a criação de cotas para deficientes intelectuais, além de acreditar que o processo seletivo deve ser reestruturado para se tornar verdadeiramente inclusivo. "Ele concorre em tudo contra a maioria. Ele não entra na cota dos índios, nem dos negros, nem dos provenientes de colégios públicos", afirma, explicando que considera essa pressão por mudanças um processo emergente, "Até então não existia, você não via acontecer isso. E agora eles estão começando a querer o espaço deles também". Em uma frase, ela resume suas propostas para o processo seletivo: "Igualdade não é todo mundo ser igual, é conseguir equiparar as pessoas dentro de uma mesma necessidade".
Aprovação no vestibularCom o apoio de milhares de seguidores nas redes sociais, Jorge não desistiu, mas mudou de opção: deixou de tentar a Uesc para prestar vestibular na União Metropolitana de Educação e Cultura (Unime), uma faculdade privada. Apesar da mudança, ele passou a se deparar com problemas básicos: no primeiro vestibular ele não teve acesso a um computador para responder às questões e acabou reprovado porque os avaliadores alegaram não conseguir entender sua caligrafia. Na segunda tentativa, veio a tão esperada aprovação, mas a Unime comunicou Nilda de que a faculdade não teve um número suficiente de estudantes para organizar uma turma de Comunicação Social.
Em vista disso, a faculdade permitiu que ele se matriculasse em outros cursos, mas não adiantou, Jorge estava decidido: ia ser comentarista esportivo. E a família decidiu tentar novamente, também sem sucesso. "Na terceira vez, quando eu fui tentar fazer a matrícula, eu já estava conhecida", afirma Nilda, contando que a recepcionista chamou imediatamente a coordenadora do curso para tratar da questão. Reticente, a educadora questionou a mãe de Jorge se ele estaria realmente preparado para estudar - e se ele não iria se frustrar com o curso. Depois da conversa, em que defendeu que seu filho estava tão passível de se frustrar quanto qualquer outra pessoa, Nilda não conseguiu fazer a matrícula. "A moça nunca me deu um retorno. Eu liguei milhões de vezes e ela sempre estava de férias, de férias, de férias... E nunca me deu um retorno", conclui.
Jorge surpreende mãe com "urso" ao anunciar aprovação no vestibular |
A vitória foi alcançada no início de 2013, e é o próprio Jorge quem resume os últimos acontecimentos: "O processo começou no ano passado e graças a Deus hoje estudo na Universidade Salvador (Unifacs), fazendo faculdade em ensino a distância". Graduando do curso de Comunicação e Marketing, ele reconhece os desafios que superou e tece novos sonhos para o futuro profissional: "Estou muito feliz por estar na faculdade e ajudar a Unifacs a ter um bom comentarista".
Apesar de ser um exemplo de sucesso, ele enfrentou no percurso até o ensino superior uma realidade pautada pela discriminação. "Você não vai pegar uma pessoa de uma perna só e fazer ela apostar corrida com quem tem as duas. E nem botar uma pessoa de cadeira de rodas na porta da sala de aula e dizer: 'Quando você conseguir entrar aqui andando, você aprende'", critica Nilda, ao questionar o contexto de desigualdade que pôde experienciar.
Jorge surpreende mãe com "urso" ao anunciar aprovação no vestibularA família agora se prepara para enfrentar novos obstáculos, desta vez impostos pelo mercado de trabalho. "Quando você fala em deficiente, você nunca imagina um deficiente intelectual, portador de Down. Você tende a imaginar o quê? Alguém capenga, alguém que não tem o braço, né? Até cego, essas pessoas que dão mais trabalho, eles [os empregadores] já evitam. Existe o preconceito ainda", declara Nilda. Apesar de todos os problemas enfrentados, ela parece tão resoluta em ajudar o filho a realizar o seu sonho quanto estava ao ensiná-lo matemática na infância. Pois, se depender de Nilda, esse urso vai longe. Veja tambémBaianos com deficiência intelectual lutam por diploma de curso superiorDeficientes intelectuais são invisíveis em suas próprias universidades
Matéria original Correio 24hEstudante com deficiência luta para realizar o sonho de ser comentarista esportivo
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