Os fogos pipocaram anunciando o início dos festejos. Às cinco horas da manhã daquele dia claro e quente, eu já me encontrava aos pés da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, o ponto de partida das homenagens ao Senhor do Bonfim. Parado, em total silêncio (ainda que a barulheira envolvesse tudo ao redor), aguardava pacientemente que os técnicos ajustassem som e imagem para as nossas entradas Ao Vivo.
O tempo corria e, minutos antes de ouvir do editor-chefe o famoso “Vai!”, as pernas tremeram, a boca ficou seca, um friozinho invadiu a espinha. Pensava se daria conta do recado, se conseguiria reportar a festa em seu exato tamanho, se teria a sensibilidade necessária para traduzir, em palavras, a grandiosidade daquele sentimento coletivo. Seria eu capaz de me expressar com a eloquência que pedia a mais extraordinária história de devoção de um povo pelo seu protetor?
Leia também:
Isso se passou em 2006, o meu primeiro ano de cobertura da Lavagem do Bonfim. Era, então, um repórter recém-chegado de Vitória da Conquista, um jovem jornalista ávido para viver o que, até ali, só conhecia pela TV.
Tinha uma sede louca de escarafunchar cada aspecto da festa, um desejo de mergulhar nas histórias de fé da gente que, desde a madrugada, brotava de cada rua, beco e viela da cidade. Me lembro de olhar para a Ladeira da Conceição da Praia, ali pertinho, e de me impressionar com a multidão festiva vestida de branco, as levas e levas de devotos descendo o asfalto com flores, fitas, velas, santinhos, terços, os coloridos fios de conta, as quartinhas com suas águas de amaci, as gamelas, bacias e najés com milho branco para Oxalá.
Depois que o cortejo partiu pelas ruas do Comércio e avançou por São Joaquim, Largo da Calçada, Largo dos Mares, Largo de Roma e Avenida Dendezeiros, e ao avistar do Hospital de Irmã Dulce as torres da Basílica Sagrada, a minha ficha caiu de vez: sim, aquela tradição festiva e religiosa instaurada na cidade do Salvador em 1745 permanecia, tanto tempo depois, amalgamada na alma e no coração do povo, incrustada no imaginário e no sentimento da coletividade, e eu fazia parte dela.
Veja também
Quando ouvi os atabaques soando ao pé da Colina, e ao ver as iaôs dos terreiros de candomblé dobrarem os joelhos para “bater cabeça” saudando Oxalá, e tudo o mais que envolvia a festa, os seus cheiros, as suas cores, os sons misturados, os gritos e as preces, os beijos e as lágrimas, a água perfumada, a cerveja derramada, os empurrões, os bendizeres, as mãos que abençoavam e as mãos leves à procura dos desatentos, então diante de tudo aquilo o jovem jornalista entendeu o sentido do que que Gilberto Gil escrevera em “Lavagem do Bonfim”: “Zona franca de folia, de fé, de devoção / Segura os joelhos nessa chegada / Que o peito arde de paixão!”
Ricardo Ishmael
Ricardo Ishmael
Participe do canal
no Whatsapp e receba notícias em primeira mão!