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“Que barulho é esse?”, indaga a menina quando alguém arrasta com força a cadeira no chão. Um questionamento comum, se não viesse de Ticiana Mendes Santos, 16 anos, deficiente auditiva, totalmente surda. Mas, mostrar em uma pergunta que o silêncio simplesmente não existe, superar a barreira da ausência de som, seria pouco para ela. A adolescente de sorriso sempre tímido foi aprovada no concorrido processo seletivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (Ifba). O que já seria um grande feito é mais surpreendente quando se descobre que Ticiana passou por aulas de um curso regular, sem intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras). Foi fazendo a leitura labial dos professores que aprendeu o conteúdo em sala. Moradora do bairro de Marechal Rondon, aluna de um curso para estudantes de baixa renda da Igreja Batista Sinai, no Barbalho, Ticiana começa a nova jornada hoje, quando dá início ao curso integrado de Química. “Não tenho medo de não conseguir me comunicar. Tenho medo é do trote”, brincou Ticiana, através da intérprete Laura Carvalho, que fez a tradução.
TransformaçãoA entrada de uma surda no curso preparatório da igreja provocou uma revolução. Aos poucos, a presença da menina mudou as aulas. No princípio, os professores estavam perdidos. “Procuramos mostrar que não deveriam, por exemplo, falar de costas para a turma”, lembra a intérprete, amiga de Ticiana, que conversou pessoalmente com os docentes nas primeiras aulas. Carol Silveira, professora de Redação e Gramática, passou a trabalhar mais com gestos. “A gente tinha que apontar para o quadro toda vez que queria mostrar sobre qual assunto estava se referindo”. Era preciso se expressar com clareza, escrever no quadro sem pressa. “O professor de Matemática escrevia muito rápido”, entregou, sorrindo, a própria Ticiana. Uma das dificuldades era o microfone. “Nas primeiras aulas, alguns professores colocavam o microfone na frente da boca”. Mesmo depois de todos os cuidados, era impossível acompanhar 100% do conteúdo. Para compensar, contou com a ajuda de colegas. Pedia cadernos emprestados, copiava apontamentos inteiros e tirava dúvidas com os professores após as aulas. “A gente percebe que ela tem muito mais dedicação que os outros”, diz pró Carol. Mas a aprovação era uma incógnita. A própria mãe da menina, Cândida Santos, admite que teve dúvidas de que a filha superaria os concorrentes. O curso de Química está entre os cinco mais procurados do Ifba. “Tinha esperança, mas, pensando na limitação dela, cheguei a prepará-la para uma reprovação”. Não seria o fim do mundo. Para quem aprendeu a ouvir o mundo de outra forma, problemas são trampolins.
Meningite provocou surdez aos 2 anosAos 2 anos, Ticiana Santos ouvia bem e falava quase tudo. “Já frequentava a escola”, conta a mãe, Cândida Santos. Foi quando uma meningite a deixou internada por um mês no Hospital São Rafael. Após o tratamento, saiu da unidade praticamente sem sequelas. Mas uma médica neurologista alertou sobre a possibilidade de uma futura surdez. Com três semanas, Ticiana não atendia a porta de casa porque não ouvia a campainha. Com 3 anos, tinha perdido totalmente a audição. “Foi muito difícil. O chão se abriu”, diz a mãe. Para ser alfabetizada, Ticiana foi transferida para uma instituição especial. Ali, aprendeu a ler, escrever e fazer leitura labial. Ao chegar à 8ª série, queria realizar o sonho de estudar no Ifba. O ideal era entrar em um curso preparatório. O problema era a falta de intérprete. “Eu me viro”, disse, à época, para a mãe. Como boa parte dos surdos, Ticiana consegue até se comunicar oralmente. A voz costuma ser um pouco rouca. Mas ela não pode ser chamada de surda-muda, termo hoje em desuso. Na verdade, diz a intérprete Laura Carvalho, não existe mudo. “Os surdos não só emitem sons como sabem falar”. A mãe de Ticiana arruma várias formas de se comunicar. Falam com o coração. “Ainda não sou muito boa em Libras. Mas a gente se entende”, diz.