Em 1555, as paredes do prédio Quinta do Tanque, ou Quinta dos Padres, como ficou conhecido, já guardavam a história da Bahia. Doada aos padres jesuítas pelo então governador Tomé de Souza, no século XVI, a construção histórica foi, inclusive, refúgio do Padre Antônio Vieira. Quatro séculos depois, em 1980, ele passou a ser também a sede do Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB) - acervo que pode estar com o futuro ameaçado.
Patrimônio histórico nacional, desde 1949, o Quinta dos Padres vai ser leiloado pela segunda vez nesta quarta-feira (25). Localizado na Baixa de Quintas, o imóvel é penhorado em um processo judicial que cobra indenização contra a Empresa de Turismo da Bahia S.A (Bahiatursa). Em 2022, o prédio já tinha ido à leilão e chegou a ser arrematado, mas o autor do lance único de R$13,8 milhões, desistiu da arrematação.
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Um ano depois, o imóvel volta a casa de leilões com um lance mínimo de 50% do valor avaliado do bem, que corresponde a R$12.448.851,34. De acordo com a Procuradoria Geral do Estado (PGE), o Governo da Bahia não participou do primeiro leilão e também não participará de nenhum outro. A justificativa, segundo o órgão, é atribuída a "distorção quanto ao valor atribuído ao imóvel pelo leiloeiro e o correto valor de mercado (diferença injustificada de R$5 milhões), o que poderia provocar danos ao erário público".
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Ainda segundo a PGE, o imóvel vai a leilão novamente pelos mesmos motivos de 2022: uma ação ordinária movida pela GF Arquitetos Ltda, ajuizada em 25 de setembro de 1991, em curso na 3ª Vara Cível da Capital, contra a Bahiatursa. Na ocasião, a Bahiatursa alegou a inexistência de contratação e que os projetos não tinham sido apresentados de forma espontânea. Em 1990, a ação foi julgada procedente e um acordo foi feito. No entanto, a autora da ação afirma que o trato não foi cumprido.
"Com a extinção da Bahiatursa (Lei nº 13.204/2014) e suas funções assumidas pela Secretaria de Turismo, o Estado da Bahia ingressou na ação, representado pela Procuradoria Geral do Estado. A penhora se mostra válida considerando que, quando ocorreu, o bem tinha natureza privada e não pública", afirmou nota da PGE.
A questão, no entanto, vai além disso. Apesar do imóvel leiloado ser o Quinta dos Padres, que, além de ser um patrimônio histórico, é também um patrimônio público, há a preocupação quanto ao futuro do Arquivo Público da Bahia, já que é parte integrante do prédio. Criado em 1890, a autarquia vinculada à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (Secult-BA), é considerada a segunda mais importante instituição arquivística pública estadual do país, com documentos de 214 anos de história.
A História em risco
A vice-presidente da Associação dos Arquivistas da Bahia (AABA) e coordenadora do FNarq, Leide Mota, questiona o leilão e relata que a maior preocupação é a possibilidade de danos ao patrimônio documental, histórico, e a preservação da identidade e memória do povo brasileiro.
Segundo Leide, caso o imóvel seja arrematado e exista a possibilidade do novo dono decidir retirar o acervo do prédio, os documentos podem ser perdidos, já que, além de serem muitos antigos, necessitam de cuidados específicos, e que, para serem transferidos, pode levar anos.
"A gente não tem um local ideal para levar ele [o Arquivo]. Qualquer lugar que fosse levar o APEB pra lá, seria um local inadequado e nas medidas inadequadas", explicou.
"É uma ameaça à manutenção da história. O ideal é que fosse construído um prédio da magnitude que é o Arquivo Público de São Paulo, por exemplo, própria para abrir o Arquivo. E levaria anos para restaurar", continuou.
Ao todo, são 7.360,14 metros lineares de documentos, com datas desde o século XVI até o século XXI, em formatos textuais, iconográficos, cartográficos e mantêm uma biblioteca especializada em história da Bahia. A transferência desse material, já fragilizado por conta do tempo, necessita de cuidados específicos de acondicionamento e outros processos. Há ainda alguns que nem sequer puderam ser digitalizados devido o tempo de existência.
"A digitalização é uma maneira de preservação. Mas existem documentos que são tão antigos que não existe a possibilidade de serem digitalizados. Porque são documentos muito frágeis, não pode sair dali", destacou Leide Mota.
Em entrevista ao iBahia, o historiador Murilo Melo (@murilomellohistoria), também destacou a importância do acervo para a cultura do Bahia e do Brasil.
"A importância desse Acervo é descomunal. A gente tem mais de 41 milhões de documentos ali guardados, é uma coisa suntuosa, uma coisa maravilhosa. Ele é o portal pra você acessar a nossa história. Ele tem um valor inestimável para acessar nossa cultura, nossa ciência. É importante para os órgãos públicos que desejam fazer qualquer alteração projeto. Uma importância de memória absurda", afirmou.
Entre os documentos que podem serem encontrados no Acervo, há os altos da devassa (espécies de processos judiciais), da Conjuração Baiana, da Revolta dos Malês e outros fatos históricos da Bahia.
A Associação dos Arquivistas da Bahia (AABA) publicou uma nota de denúncia e repúdio em que manifesta "profunda preocupação e indignação diante de uma nova e alarmante ameaça ao patrimônio cultural e histórico do estado da Bahia".
"É inadmissível que nós enfrentemos mais uma vez a iminência de perder um espaço de valor histórico e cultural inestimável para a Bahia. Esperávamos que esse leilão fosse anulado, especialmente após as afirmações do ex-diretor da Fundação Pedro Calmon, Zulu Araújo, durante o I ENCONTRO DE ARQUIVISTAS DA BAHIA, realizado em 20/10/22. Ele nos informou que o 'Arquivo Público do Estado da Bahia não irá a lugar algum' e que o governo tomaria todas as medidas necessárias para preservar tanto o prédio quanto o acervo sob a guarda do Estado e da Fundação Pedro Calmon", diz trecho do comunicado.
A carta foi assinada pela Associação Nacional de História (ANPUH), Associação dos Arquivistas da Paraíba (AAPB), Fórum Nacional das Associações de Arquivologia do Brasil (FNArq), Fórum Nacional das Associações de Arquivologia do Brasil (FNArq), Associação Mineira de Arquivistas (AMArq), Associação dos Arquivistas do Estado do Rio de Janeiro (AAERJ), Associação de Arquivistas do Estado de Santa Catarina (AAESC) e Associação Mineira de Arquivistas (AMArq).
Posicionamentos
Em nota enviada ao iBahia, a Secretaria de Cultura da Bahia (Seculr-BA), a partir da nota da Fundação Pedro Calmon, entidade responsável por administrar o Arquivo Público, afirmou que a pasta e a entidade monitoram o andamento do processo judicial do leilão, determinado pela 3ª Vara Cível e Comercial de Salvador.
Afirma ainda que defende que o prédio Solar da Quinta do Tanque é parte "indissociável da memória, identidade e do patrimônio cultural e histórico" do estado e que tentará manter o Arquivo Público do Estado da Bahia no local, mas sem garantia de que vá acontecer.
"O Governo do Estado da Bahia defende que o prédio Solar da Quinta do Tanque é parte indissociável da memória, identidade e do patrimônio cultural e histórico do nosso estado, razão pela qual estamos empenhados em garantir que a sede do APEB siga funcionando nas dependências dessa importante edificação, desempenhando sua nobre missão, permanecendo acessível à comunidade acadêmica, pesquisadores e ao público em geral.", afirmou em nota.
Já o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), ao ser questionado se pode atuar ou interferir no leilão do prédio, afirmou não poder "questionar ou impugnar" a ação. E destacou que, caso ocorra a arrematação, o prédio Quinta dos Padres, a proteção ao imóvel não vai sofrer mudanças. No entanto, salientou que o tombamento do Iphan incide sobre a edificação e não ao acervo do Arquivo Público.
"O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) não pode questionar ou impugnar eventual leilão de bem imóvel tombado. No entanto, destacamos que permanecerão válidos, para todos os fins, os efeitos do tombamento do imóvel em relação ao eventual futuro adquirente do bem, de acordo com o Decreto-Lei nº 25/1937. Ou seja, a alienação do bem, caso ocorra, não interferirá no regime de proteção do imóvel - destacando que o tombamento do Iphan incide sobre a edificação e não ao acervo do Arquivo Público", diz a nota.
Nathália Amorim
Nathália Amorim
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